Elisa Lucinda, Altay Veloso, Sueli Carneiro e Claudio Jorge tiveram suas trajetórias de vida reconhecidas pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) na terça-feira (22), por suas ações efetivas na defesa dos direitos raciais no Brasil.
Presencialmente no Auditório Antônio Carlos Amorim, a Escola promoveu o Prêmio EMERJ Consciência Negra, que entregou o Troféu Esperança Garcia, o qual leva o nome da primeira advogada piauiense, Esperança Garcia, símbolo da luta contra o racismo e pela igualdade de raça, gênero e classe social no Brasil.
“Este prêmio é resultado do compromisso que a EMERJ, sua administração e seu conselho consultivo assumiram com estratégias pedagógicas mais eficientes, que vêm sendo desenvolvidas pelas academias judiciárias no Brasil e no mundo, que visam a chamar a atenção para o racismo, o preconceito e a discriminação como males sociais perversos, que impedem a construção e reconstrução de sociedades mais fraternas, solidárias e iguais na liberdade e nos direitos”, destacou a diretora-geral da EMERJ, desembargadora Cristina Tereza Gaulia, doutora em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), em vídeo gravado para o evento.
Os homenageados
“É muito emocionante estar na mesma cerimônia que tantas pessoas importantes. Fico pensando em como fazem falta os ensinamentos dos povos originários na construção do mundo. Vivemos em uma sociedade que vê o outro como inimigo, como concorrente. Se não fosse nossa luta, não teríamos vencido o silenciamento que nos é imposto”, pontuou Elisa Lucinda.
Reconhecida no meio musical e da dramaturgia por seus trabalhos no cinema, na televisão e no teatro, a homenageada é atriz, jornalista, escritora e cantora. Em 2020, foi premiada no Festival de Cinema de Gramado pelo filme “Por que Você Não Chora?”. Sua carreira começou na telenovela “Kananga do Japão” e, após outras participações na TV Manchete e no SBT, chegou à TV Globo, onde interpretou importantes personagens nas novelas. Com 35 anos de profissão, Elisa Lucinda se consolidou como um dos maiores nomes na difusão da arte produzida por pessoas negras do país.
Com mais de 50 anos de carreira, o guitarrista, violonista, compositor e cantor Claudio Jorge já teve suas composições gravadas por intérpretes importantes da MPB, tais como: Emílio Santiago, Elymar Santos, Ângela Maria, Alaíde Costa, Zeca Pagodinho, Elza Soares, Zezé Mota, Jorge Aragão, Martinho da Vila, entre outros. Seu trabalho mais recente, “Samba Jazz”, recebeu o Grammy Latino na categoria “Melhor disco de samba”.
Ele agradeceu: “Me emociona receber esta premiação na EMERJ. Enquanto vinha para cá, estive pensando que já recebi algumas honrarias, mas esta é especial. Viver em um país como o nosso, que tem sua história de formação baseada na escravidão, que vive inúmeras questões de racismo e intolerância, receber um troféu com esse nome é algo muito saboroso. Esperança Garcia é um símbolo, um orgulho nacional, uma forte representante do que chamamos de ancestralidade. Sempre fui muito influenciado por isso, meu trabalho musical sempre foi muito pautado na origem africana”.
“Pertenço a uma geração que nunca recebeu reconhecimento. Receber este tipo de troféu é como afirmar a legitimidade das lutas que nos impulsionaram durante toda a vida. Para mim, é o reconhecimento da contribuição de gerações, de uma ancestralidade que dedicou sua vida à resistência às formas de discriminação que o racismo construiu sobre nosso povo. Esperança Garcia é um símbolo extraordinário da coragem, da resistência e da resiliência das mulheres negras”, disse Sueli Carneiro.
Filósofa, escritora e ativista antirracista do movimento negro brasileiro, Sueli Carneiro é uma das principais referências da discussão do feminismo negro no Brasil e das cotas raciais nas universidades brasileiras. Possui mais de 150 artigos publicados em jornais e revistas, além de 17 livros relacionados ao tema. Por seu trabalho, foi vencedora do Prêmio Itaú Cultural em 2017, do Prêmio Benedito Galvão em 2014, do Prêmio Direitos Humanos da República Francesa, do Prêmio Bertha Lutz em 2003 e do Prêmio de Direitos Humanos Franz de Castro Holzwarth.
O quarto homenageado foi o cantor, compositor e guitarrista Altay Veloso. O artista começou sua carreira aos 21 anos nas bandas O Ranch e Bando do Bando, que abriram portas para sua jornada. Em 1980, gravou seu primeiro disco autoral, intitulado “O Cantador”. Nos anos seguintes, lançou “Sedução” e “Paixão de d’Artagnan”.
Altay Veloso emplacou trilhas sonoras de novelas da Rede Globo e foi convidado para se apresentar no Festival de Jazz de Montreal por três anos consecutivos. O artista produziu músicas para outros cantores renomados, como Elba Ramalho, Vanusa, Roberto Carlos, Jorge Aragão, Wando, Alcione, Emilio Santiago, Jorge Vercillo, Belo, Alexandre Pires, entre outros, totalizando mais de 450 canções.
“É uma honraria muito especial. Sempre fico em dúvida se mereço essas premiações, especialmente esta, com um nome tão importante. Trabalhamos e lutamos por amor, hoje recebemos um reconhecimento que nos recarrega a energia. É fundamental uma continuidade do prêmio. Você precisa sinalizar para os jovens negros quem somos nós, o que fizemos, o que ainda faremos. Pouca gente sabe da existência de Esperança Garcia, então é muito importante que continue para levar o conhecimento a novas gerações”, destacou.
O prêmio
A desembargadora Cristina Gaulia falou da manutenção da premiação, que agora passa a estar na pauta da EMERJ.
“O troféu, que leva o nome dessa mulher escravizada, passa a ser entregue a pessoas negras que se destacam na defesa do antirracismo, resistindo com seu próprio existir à abominável crença de superioridade de certas pessoas sobre outras, lutando no dia a dia, em várias frentes, para afastar definitivamente a apologia de que características físicas garantem o poder de uns sobre os outros. O combate à discriminação racial é uma luta de todos os brasileiros, em todos os lugares deste país”, explicou a magistrada.
“Este prêmio nasceu ainda na pandemia, quando nosso Fórum Permanente de Direito e Relações Raciais foi criado na EMERJ. Hoje, a Escola está dando seguimento a uma cerimônia que é muito importante para nós. Felizmente, isso se tornou algo permanente na Escola, e agora ele está na pauta anual da instituição”, complementou o juiz André Luiz Nicolitt, doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa (UCP).
O desembargador Claudio Luis Braga Dell´Orto, membro do Conselho Consultivo da EMERJ, pontuou: “Hoje, vivemos um momento de esperança. É necessário que a magistratura seja, de fato, um exercício de poder do povo, representada por todos que integram a sociedade brasileira”.
“Atrás de cada processo que vemos, há alguém com um sofrimento, uma angústia, um problema. Precisamos conhecer o outro, saber quem é que nos procura. Muito se fala em poder, mas o que realmente nos liberta é o conhecimento, a cultura, o saber. Homenagear essas pessoas tão importantes é um privilégio. Obrigada pela coragem, pela determinação e por nunca perderem a esperança de nos transmitir tanto conhecimento”, disse a desembargadora Ana Maria Pereira de Oliveira, presidente da Comissão de Biblioteca e Cultura.
A presidente da Advocacia Preta Carioca, Angela Borges Kimbangu, afirmou: “Nós somos muito desumanizados. As pessoas querem achar uma caixa para nos colocar. Sou uma mulher preta, isso é maravilhoso. Quando falo isso, estou lembrando da minha mãe, da minha avó, da minha bisavó, do primeiro africano que colocou os pés nesta terra. Agradeço por essa iniciativa do prêmio. Precisamos, sim, honrar esse povo preto que construiu a nação. Toda a riqueza do Brasil pertence ao povo preto”.
Durante a cerimônia, houve apresentação artística da banda “De Flores”, liderada pelo juiz André Nicolitt.
Quem foi Esperança Garcia?
Esperança Garcia foi uma mulher escravizada no século XVIII em Oeiras, município a 300km de Teresina. Nasceu na Fazenda Algodões, propriedade que pertencia a padres jesuítas, onde aprendeu a ler e escrever. Com a expulsão dos catequistas e a transferência da fazenda para senhores de escravos, foi separada dos filhos e do marido para ser enviada a outras terras.
Com a situação vivida, escreveu uma carta na qual relatava os maus tratos sofridos por ela, por outras mulheres e por homens em uma fazenda da região. O documento foi encontrado em 1979 pelo historiador Luiz Mott, no Arquivo Público do Piauí, quando realizava sua pesquisa de mestrado.
Escrita em 1770, a carta foi reconhecida como uma petição após 247 anos, em 2017. De acordo com pesquisadores, Esperança Garcia tinha apenas 19 anos quando escreveu o documento reivindicando direitos ao governador.
Dossiê Esperança Garcia
Fruto da pesquisa feita pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da OAB/PI, composta por juristas e historiadores, o “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito” aponta, entre suas principais conclusões, que ao escrever a carta, Esperança Garcia se reconheceu e atuou como membro de uma comunidade política, pedindo aquilo que lhe era de direito segundo ordenamento jurídico da época.
Flickr: https://www.flickr.com/photos/emerjoficial/albums/72177720303929751
Fotos: Maicon Souza
23 de novembro de 2022
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)