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“Modernas Tendências do Processo Penal na América Latina” é tema de palestras na EMERJ

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O Fórum Permanente de Direito Processual Penal da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) promoveu nesta quarta-feira (03) sua 4ª reunião, com o encontro “Modernas Tendências do Processo Penal na América Latina”.

O evento aconteceu presencialmente no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura, com transmissão via plataforma Zoom e tradução simultânea do espanhol para o português e para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Abertura

O desembargador aposentado Luís Gustavo Gradinetti Castanho de Carvalho, presidente do Fórum e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), destacou em sua fala de abertura do encontro: “O tema ‘modernas tendências do Processo Penal na América Latina’ é uma insistência que particularmente venho tendo, porque é uma forma de abrir para os estudantes e estudiosos brasileiros o que se aporta nesses países de bom para o Brasil. Tradicionalmente nosso meio jurídico se preocupa mais com a Europa e é como se ficasse de costas para a América Latina, onde temos raízes comuns, apesar da diferença de colonização. Nós sofremos alguns fatos históricos trágicos comuns. Todas as repúblicas latino-americanas passaram nas décadas de 60 e 70 por golpes de estado com ditaduras militares ou civis, apoiadas por militares. Todos os países, com exceção da Costa Rica. E os países da América Latina saíram dessa experiencia traumática de maneira diferente do Brasil. Enquanto os demais países deram o nome de ditadura ao regime, ergueram museus comemorativos da recuperação da democracia e alguns condenaram os militares que praticaram crimes contra a humanidade, o Brasil optou por uma anistia silenciosa e nada fez para demarcar que aquilo foi um golpe”.

“As consequências da nossa reação mais suave vêm no Processo Penal. Enquanto o Processo Penal desses países rompeu com o velho processo inquisitorial, oriundo do modelo espanhol, o Brasil não achou necessário romper com nada e seguimos com esse modelo, com algumas reformas pontuais acusatórias, mas que, no entanto, não se adaptam ao modelo do código e a mentalidade dos operadores do Direito. Costumo dizer que as nossas inovações constitucionais são como um aplicativo moderno em um computador antiquado, ou seja, não roda. E isso é levado até a Suprema Corte. Por conta dessas incongruências que ocorrem no Brasil é preciso olhar para a América Latina e ver o que de bom tem sido produzido em termos de Processo Penal. Por isso insisto no tema, para que nos encantemos com o que tem sido feito na América Latina em termo de progresso”, concluiu o desembargador aposentado Luís Gustavo Gradinetti Castanho de Carvalho.

Chile

O juiz de garantia do 2º Tribunal Penal de Santiago Eduardo Gallardo Frías, professor de Direito da Universidade Alberto Hurtado (UAH), frisou: “A reforma do Processo Penal chileno evidencia que o processo de reformas radicais, como o caso do Chile, normalmente se desenvolve em um contexto social e político específico, não acontecem do nada. Após a ditadura, havia um país muito traumatizado com a violação de direitos humanos e percebemos que o antigo modelo de julgamento, muito ortodoxamente inquisitivo, não tinha a capacidade de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos. Logo no começo dos anos 90, com o governo democrático no poder houve alguns eventos de terrorismo que também alarmaram os setores que não tinham se preocupado tanto com os direitos fundamentais na ditadura. A partir daí, aconteceu uma coisa estranha. Os setores mais liberais, preocupados com os direitos fundamentais, e os mais conservadores, preocupados com a eficiência do sistema penal, conseguiram perceber que o sistema inquisitivo era ruim para todos, porque ele não conseguia proteger e tampouco perseguir o crime de forma eficaz. Isso gerou um consenso muito importante em função da necessidade de uma reforma processual penal que transitasse para um modelo acusatório”.

“Outra questão muito importante é que se percebeu que a tarefa principal não era apenas uma reforma legal, mas sim uma transformação cultural com a mudança da mentalidade inquisitiva. Isso gerou a necessidade de formar e capacitar pessoas. No Chile não havia Ministério Público, promotores. A reforma era para começar do zero. Por último, uma questão de sorte. No Congresso atual do Chile, uma reforma do Processo Penal não daria certo, provavelmente seria um desastre. Nos anos 90 tivemos uma classe política muito consciente e convicta da necessidade de que a reforma penal era uma política de Estado e não uma briga de ideologias. Isso permitiu gerar um equilíbrio normativo de setores com pensamentos diversos. E não foi algo rápido. O processo demorou três governos diferentes para ser implementado. Isso é reflexo de que um processo de reforma estrutural do Processo Penal exige conceitos fundamentais e o convencimento de que isso não é uma obra de um governo ou de um setor político, mas um compromisso de Estado”, prosseguiu o juiz Eduardo Gallardo Frías.

Em sequência, disse: “Em termos gerais, o Chile gerou dois tipos de juízes criminais ou penais: os das garantias e os orais. Hoje eu julgo no tribunal oral e, sinceramente, não passa pela minha cabeça a possibilidade de julgar imparcialmente se eu tiver conhecimento, por exemplo, da denúncia, da prisão em flagrante ou se eu tivesse decretado grampos telefônicos. Não falo na teoria, falo da minha experiencia. Seria absolutamente impossível e foi isso que justificou a separação das funções. Temos o juiz das garantias, que atua na fase preliminar de investigação a na fase intermediária de controle de admissibilidade e legalidade das provas, e o juiz oral, que julga o cidadão. O importante é que o juiz oral não tem nenhum contato com as questões debatidas na fase preliminar, nem acesso físico aos autos e relatórios. Só se julga em função das provas do juízo. O juiz das garantias, portanto, é um agente que cuida do delicado equilíbrio entre as garantias e a eficiência da persecução criminal. Isso é muito importante”.

“Nosso modelo acusatório não só se sustenta na fundamental separação entre a acusação e o julgador, mas também na separação dos juízes. O juiz das fases preliminares já tem tanta informação sobre o processo na cabeça que é impossível imaginar que ele possa sentar e julgar imparcialmente, tirando magicamente tudo que ele sabe previamente da cabeça. O problema central da correta compreensão do juiz das garantias é esse: ele controla a legitimidade e a qualidade da informação, para que outro julgador possa fazer um julgamento imparcial. Quando não há essa separação, a ideia de que o cidadão não está sendo julgado baseado no inquérito é um mito”, finalizou o juiz Eduardo Gallardo Frías.

Rafael Blanco, professor de Direito Processual Penal da UAH e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade Interamericana de Porto Rico (UIPR), salientou: “A questão que me parece central tem a ver com o que eu chamaria de desafios centrais dos sistemas processuais que são complexos. Nos anos 80, o foco da preocupação dos sistemas penais e processuais penais estava fundamentalmente na proteção dos direitos e garantias dos imputados e acusados nas distintas etapas do processo. Com o decorrer dos anos, aparece a necessidade de incorporar mecanismos de proteção dos interesses das vítimas, em particular as vítimas com níveis de vulnerabilidade mais significativas. Outro desafio se refere as formas de garantir altos índices de eficiência e eficácia da persecução penal, protegendo os direitos dos imputados e as vítimas, mas resolvendo casos. O último desafio é que não basta que a academia e os atores do Processo Penal cumpram essas etapas, o Processo Penal não pode produzir decisões contra-intuitivas ou contra-majoritárias, é preciso um esforço para conquistar maior legitimidade do processo penal. Esse é um desafio crítico da democracia”.  

“O juiz de garantias é uma figura fundamental do sistema acusatório e da imparcialidade, com a separação das fases pré-processual e o julgamento de fato. Outra questão é a parte administrativa para essa imparcialidade. Fica claro que o juiz de garantias, imparcial do procedimento acusatório, não é um juiz gestor, nem dos interesses do Ministério Público, nem dos interesses administrativos, cartorários. A imparcialidade está vinculada ao fato do juiz não estar gerindo interesses administrativos. Aqui no Brasil, o juiz se preocupa com a compra do papel, lanche de jurados. No Chile, o juiz está ali apenas para a função dele, que é de julgar”, encerrou a juíza Tula Corrêa de Mello, membra do Fórum e doutora em Direitos Fundamentais e Novos Direitos pela Universidade Estácio de Sá (Unesa).

América Central

O desembargador aposentado Luís Gustavo Gradinetti Castanho de Carvalho pontuou: “Gostaria de dizer para aqueles que ainda pensam que o Brasil está muito acima, mais evoluído que os países da América Central, quero dizer que pelo último Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), de 2020, publicado recentemente, o Panamá ficou em 6º lugar e o Brasil em 15º. Em termos de anos de estudo, o Panamá ficou em 6º lugar e o Brasil em 17º. Sobre PIB per capita, o Panamá tem o maior da América Latina e o Brasil o 8º. Em termos de pobreza, o Panamá tem a quarta menor taxa da região e o Brasil a sexta. Em todas essas estatísticas que compõem qualidade de vida de um país, o Panamá está à frente do Brasil e não tenho a menor dúvida em dizer que o Código de Processo panamenho é muito superior ao brasileiro”.

O advogado Eduardo Hosken, mestrando em Direito na Uerj, declarou: “O Código de Processo Penal do Panamá prevê autonomia do Ministério Público. O juiz é vedado de praticar qualquer ato que implique na investigação ou na acusação. A função de investigar e acusar é do Ministério Público, que atua com o princípio da objetividade. Outra grande mudança foi a institucionalização do juiz de garantias, que atua da fase de investigação até a abertura do juízo oral. Todo elemento produzido durante o inquérito não é levado ao tribunal, salvo exceções nos casos de necessidade de prova antecipada. Com os elementos mínimos reunidos, ao final da investigação, com participação do Ministério Público, da vítima e da defesa, o juiz de garantias decide se será aberto o juízo oral ou se o processo será arquivado. O juízo oral é a principal fase do procedimento penal, um tribunal colegiado composto por três julgadores, que irão conhecer o processo, as provas produzidas e tomar uma decisão de mérito. O movimento de implementação desse sistema acusatório no Panamá foi um compromisso de Estado e social e está sendo positivo, um movimento de abandono do sistema inquisitório”.

“O modelo da República Dominicana me surpreendeu. Ao estuda-lo, vi que esse modelo poderia nos ajudar a repensar situações que encontramos na nossa prática e melhorá-la. O histórico do país é profundamente marcado pelo autoritarismo. Duas guerras contra a Espanha, uma contra o Haiti, duas intervenções dos Estados Unidos e uma ditadura de 30 anos. Depois de todos esses episódios, nasce o código dominicano, que é de 2002 e substitui um código de 1884, portanto, se dimensiona o tamanho da ruptura com o longo histórico de autoritarismo. Esse novo código traz uma divisão estrita e clara da separação das funções de acusar e julgar. Parece algo muito simples, mas no Brasil só viemos a ter isso agora em 2019, com o Pacote Anticrime, quando nosso Código Penal passou a afirmar que nosso modelo é acusatório. Não obstante saibamos que nosso código ainda convive com várias marcas inquisitórias, como o exemplo mais incomodo de todos, que é o Artigo 385”, afirmou o advogado Ronny Nunes, mestre em Direito Penal pela Uerj.

O advogado Ronny Nunes concluiu: “Da ótica do juiz, há a divisão em três etapas: a fase preparatória, de investigação; a fase intermediária, da admissibilidade da acusação; e a fase de julgamento. Nas duas primeiras atua o juiz de instrução, que corresponde ao juiz de garantias. Na terceira, atua o juiz de primeira instância. Nos casos em que a pena de liberdade não ultrapassa dois anos e em ações privadas, esse juiz da fase de julgamento é monocrático. Em todos os outros casos há um colegiado de juízes já em primeira instância. Mas o que talvez mais tenha me surpreendido é: contraditório efetivo instalado em todas as fases. Aqui ainda convivemos com a ideia de que não existe contraditório no inquérito. Isso é algo que precisamos promover uma mudança, para estimular o contraditório, que não está instalado de maneira obrigatória em nosso sistema. Com as comparações que podemos fazer, espero que essas novidades possam, em alguma medida, influenciar e melhorar nossa experiência que se afirma acusatória na Constituição, no Pacote Anticrime, mesmo com as modificações com a compreensão que o Supremo deu sobre o juiz de garantias, mas que ainda tem uma mentalidade profundamente inquisitória”.

O advogado Antônio Pedro Melchior, doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ressaltou: “É difícil compreender qual a visão do Supremo do modelo acusatório. Isso é ruim para o país. Já tendo passado a fase de estudar os modelos, hoje estamos preocupados em como vamos produzir um diálogo realmente efetivo com os tribunais, Ministério Público e advocacia, porque há mudanças importantes na estrutura do sistema. Precisamos entrar em um acordo teórico sobre o que identifica o modelo acusatório. Precisamos ter cuidado com os modelos comparados, mas mostrar que não estamos pensando coisas específicas, que o Brasil tem sua história e formação institucional, mas que determinados paradigmas de certo modelo se encaixam aqui e os argumentos para recusá-los não são bons. É preciso muito diálogo ainda em modelos de reforma, entender que estamos na frente em certos aspectos e em outros não”.

O juiz Nando Machado Monteiro dos Santos, membro do Fórum, também compôs a mesa.

México

A magistrada Mariela Ponce Ville, presidente do Poder Judiciário de Querétaro e doutora em Direito pela Universidade Autônoma de Querétaro (UAQ), destacou: “Eu pensaria, fazendo uma reflexão, sobre como essas novas tendências nos levam a pergunta garantista de como se legitima um Estado atuando em matéria penal frente a um governado? Sabemos que historicamente foi mal utilizado o procedimento penal para combater o crime, castigar, alterar nossa ordem social, perseguições políticas ou como um meio de controle. Isso é algo muito próprio da América Latina, mas também de outras regiões da Europa”.

“A tendência do procedimento acusatório oral é de um triângulo equilátero. As regras processuais devem pesar em igualdade entre quem acusa e o imputado, equilibradas pelo princípio da contradição. O triângulo também mostra a distância do julgador, não por uma questão de superioridade, mas pela distância que deve haver do juiz com as partes, aqueles que estão em igualdade e em contradição. O juiz observa os argumentos e provas dos dois lados igualmente e toma sua decisão, conservando sua objetividade e imparcialidade”, prosseguiu a presidente do Poder Judiciário de Querétaro.

A magistrada Mariela Ponce Ville reforçou: “No México temos três etapas. A primeira é da averiguação prévia, a etapa de investigação pré-processual conduzida pelo Ministério Público. Na segunda atua o juiz de controle. Quando o caso passa para a terceira etapa, de juízo, atua um outro juiz. Isso garante que o juiz está isento, não conhece o processo e não se envolveu com a busca por provas, e ouvirá o debate probatório para proferir sua sentença”.

“Voltando a minha pergunta inicial, como se legitima o Estado, como ele não é abusivo e não desvia seu poder frente os seus governados? A legitimação tem a ver com três pilares, também em relação triangular: garantismo; devido processo legal; e princípio da inocência”, finalizou Mariela Ponce Ville.

Victória de Tolledo, mestra em Direito Penal e Políticas Criminais pela Universidade de Nanterre, frisou: “A atual Constituição do México, de 1917, foi um grande marco a ser observado por nós com afinco. Fruto da Revolução Mexicana, foi a primeira constituição com teor social, com direitos trabalhistas, combate a ditadura. O México tem que ser nosso marco teórico. Tem também uma questão de paralelismo com o Brasil, mais que outras regiões, pelo tamanho territorial. O México é algo a ser olhado pelo Brasil”.

A juíza Tula Corrêa de Mello também esteve presente na mesa.

Argentina

Leonel González Postigo, professor em Direito Processual Penal da UAH e mestre em Direito, destacou: “A reforma, a refundação do Código Penal brasileiro é uma urgência nacional para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito. Apesar de termos nos tornado independentes em termos políticos, econômicos, todavia somos sugestionados culturalmente a estrutura organizativa da justiça penal dos países que nos colonizaram. A estrutura do Poder Judiciário permanece incólume desde a independência, não a repensamos para um Estado de Direito. Em termos processuais penais, Brasil e Argentina são muito diferentes. O Brasil, assim como o México, tem apenas um Código Processual Penal para todo o país. A Argentina tem um modelo distinto. Cada província tem seu próprio Código Processual Penal, com processos distintos”.

“As quatro grandes características de reforma do Processo Penal na Argentina são: as separações de funções de persecução e julgamento; a liderança do Ministério Público enquanto a instituição que imprime o ritmo de trabalho do sistema processual penal; as garantias do imputado; e a audiência oral e pública como centro de trabalho de todos os operadores”, encerrou o professor Leonel González Postigo.

A juíza Ariadne Villela Lopes, membra do Fórum e mestra em Justiça e Saúde pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz (ENSP/Fiocruz), frisou: “Brasil e Argentina são países vizinhos, com uma trajetória relativamente parecida, apesar das colonizações diferentes. Mas houve um momento de bifurcação em que a Argentina fez uma opção política e legislativa de instituir um processo penal democrático, adversarial e acusatório, enquanto o Brasil, também por opção política, decidiu se abster e não ingressar nesse movimento que foi aderido por diversos países da América Latina. Nesse momento, o Brasil se distancia de uma trajetória comum e permanece em um sistema essencialmente inquisitorial. Apesar disso, o Pacote Anticrime tenta implementar no Brasil o instituto do juiz de garantias e o Supremo então decide, de forma definitiva em agosto do ano passado, uma interpretação constitucional dos dispositivos referentes ao juiz de garantias”.

Também compôs a mesa a juíza Tula Corrêa de Mello.

Assista

Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=ZAgP861XLpg

 

Fotos: Jenifer Santos

03 de abril de 2024

Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)