A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) realizou nesta quinta-feira (05) a 3ª reunião do Fórum Permanente de Diálogos da Lei com o Inconsciente sobre “Diálogos de Freud com os operadores do sistema de justiça”.
O encontro aconteceu no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura e teve transmissão via plataformas Zoom e Youtube com tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Abertura
A presidente do Fórum, desembargadora Cristina Tereza Gaulia, doutora em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA), pontuou: “Como eu e o atual diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, costumamos dizer, a EMERJ busca capacitar magistrados e magistradas do seu tempo, fazendo interlocução constante do Direito com as demais ciências humanas. Os fóruns permanentes da EMERJ são abertos a todos que queiram expandir seu conhecimento, são um espaço de reflexão crítica para os operadores do sistema de justiça e para toda a sociedade civil. Portanto, hoje temos a oportunidade de refletir sobre as contribuições que Sigmund Freud realizou em sua vida, principalmente no âmbito da psicanálise.”.
O mundo do Direito, a psicologia e a psicanálise
O membro do Fórum Joel Birman, psiquiatra e doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), destacou: “O ponto central da relação da psicanálise com o mundo do Direito vai se estabelecer em torno de uma problemática crucial que é a da responsabilidade, que a psicanálise coloca no mundo jurídico desde que ela se originou com nosso patrono Sigmund Freud, na medida em que trouxe à tona a existência de uma região psíquica chamada inconsciente, que está fora do campo da consciência. Ele colocava em questão um fato, até então bastante fundamental para o discurso jurídico, que é a problemática do livre arbítrio. Através dessa descoberta do inconsciente a relação entre vontade, razão e entendimento foi colocada em questão pela psicanálise.”.
“O século XIX mostrou essa primeira interferência [da psiquiatria no Direito], em que a questão da responsabilidade era o ponto central. O mundo do Direito incorporou as considerações levantadas pelo mundo psiquiátrico e o fato de ser portador de uma alienação mental passou a desresponsabilizar o indivíduo pelo crime praticado, de uma maneira que não se poderia ser condenado juridicamente pelo crime, pois não é considerado responsável. A partir dessas considerações de interseção entre o mundo psiquiátrico e o mundo jurídico, através da questão da irresponsabilidade dos ditos doentes mentais, foi se criando um nicho e em seguida se veio a constituir o que veio a se chamar de manicômio judiciário. Mas a partir dos anos 50,60 do século XIX, houve um acontecimento maior na história da psiquiatria, que passou a cuidar do mundo dos anormais. O mundo da anormalidade abriu um leque muito maior entre o mundo psiquiátrico e o mundo do Direito. O que passou a ser colocado a partir dessa questão é que, a partir de uma anormalidade, o indivíduo poderia ser tanto um louco quanto um criminoso. É dentro desse mundo que nos anos 70 do século XIX, no campo da tradição inglesa, se cria uma forma particular de descrição de crime, que tem uma relação com o campo psíquico, chamada de insanidade moral, isto é, indivíduos que são criminosos por um desvio moral do seu caráter. Isto é, eles têm uma anormalidade que vem a ser o protótipo do que no século XX vai ser descrito como sendo as ditas personalidades psicopáticas”, seguiu o psiquiatra Joel Birman.
Na sequência, o doutor em Filosofia abordou a influência freudiana: “Freud surge por uma crítica a essa teoria da degeneração. Ele dizia que não existia uma degeneração do espírito biológico, mas sim problemas de ordem conflitual sexual, ético-moral, que levava às perturbações do espírito. Toda psicanálise surge dessa crítica, quando se delineia o campo do inconsciente como sendo o campo psíquico mais fundamental do que o campo da consciência e da vontade. A emergência da psicanálise é uma crítica radical à teoria tradicional do livre arbítrio, que já existia no campo jurídico há mais de 500 anos. Freud chamava à atenção de que não era possível investigar a existência de um crime investigando apenas a dimensão consciente dos criminosos, mas que era necessário um exame das condições inconscientes que conduziriam a um ato criminoso. É o ponto chave do argumento freudiano. Nesse contexto, ele vai destacar uma forma particular de subjetivação psíquica, na qual dizia que o sujeito é levado à prática criminal a partir do sentimento inconsciente de culpa. O fato de que o indivíduo trazia dentro de si marcas culposas fazia com que, em nome de tentar saudar a sua relação com a culpa, ele era levado a realizar atos delinquenciais. Essa é a primeira formação psicanalítica importante a respeito dessa questão. Evidentemente, nesse contexto, Freud ainda não tinha inventado o que ele vai chamar de ‘supereu’, em que ele diz que o ‘supereu’ traz a presença do imperativo categórico kantiano, que é a instância da lei moral, para o interior do campo psíquico, de maneira que é através do ‘supereu’, através da culpa inconsciente, que o sujeito é levado a praticar atos delinquentes para ser punido. Freud também abre um mundo importante de fatos criminais, bastante atual, em que as pessoas porque se sentem maltratadas pelo mundo, não reconhecidas pelo mundo, por conta de suas origens sociais, educacionais, raciais, sexuais, se acham no direito de se vingar disso através da produção de atos delinquentes e até atos homicidas. São figuras que se sentem, por conta de uma condição de exceção, autorizadas a matar, porque o mundo lhes deve algo. O sujeito acumula dentro de si um ressentimento crescente, que pode leva-lo futuramente ao exercício de um ato criminal, porque ele se sente na condição de exceção e precisa se ressarcir da violência narcísica que sofreu e restaurar isso através de um ato de vingança, através da morte”.
“Todas essas considerações, basicamente, se centram nessa descoberta que é a existência do inconsciente como sendo o espaço psíquico fundamental, em que o sujeito realiza atos motivado pelo seu desejo inconsciente, que não se coaduna efetivamente com o registro da consciência e da razão. Então esses atos, aparentemente irracionais, são decifrados pela psicanalise em torno de uma dinâmica afetiva, seja ligado ao sentimento de culpa, seja ligado à condição psíquico-social de exceção, em que o mundo tem que pagar por isso e lhe ressarcir”, concluiu o psiquiatra Joel Birman.
A psicanálise e o papel do magistrado
“Realmente acho que nós magistrados temos que mergulhar um pouco mais dentro dos afetos. Eu queria colocar esse ponto. Os magistrados no Brasil são colocados, ou se colocam, em um lugar quase deífico, e não à toa o dito popular aponta que o juiz acha que é Deus, mas o desembargador tem certeza. Os ditos populares apontam para esse desconhecimento que nós temos do mundo que giram em torno do Direito. Seria o Direito e a melhor interpretação da lei aquilo que os tribunais dizem? Ou haveria entre a lei, o Direito e o dizer dos juízes uma instância de reflexão essencial? E até que ponto nós precisamos diuturnamente dessa reflexão particularmente importante quando lidamos com a interpretação da lei e não acreditamos que a lei traga todas as respostas? A história pessoal do juiz deve necessariamente ser conhecida. Freud afirma que os comportamentos e pensamentos humanos são desenvolvidos por processos diferenciados. E ao lado do consciente está o inconsciente. Este último define, então, aqueles processos mentais sem que o indivíduo se dê conta. Os fatos externos têm uma relevância, mas o mais importante está, na verdade, dentro do desejo daquilo que o intérprete da lei não conhece. Então, um juiz sem consciência de seus processos inconscientes poderia vir a condenar, por exemplo, um homem idoso a uma pena maior por transferir para o réu os traumas de sua história familiar com o pai”, ponderou a presidente do Fórum, desembargadora Cristina Tereza Gaulia.
O desembargador federal do Tribunal Federal da 4ª Região (TRF-4) Roger Raupp Rios, doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio de Grande do Sul (UFRGS), afirmou: “Acho que o encontro entre ‘O futuro de uma ilusão’, do Freud, e ‘A ilusão da Justiça’, do Kelsen [jurista e filósofo austríaco], para nós que estamos em um espaço de formação de magistrados pode ser extremamente frutífero, porque acho possível fazer uma lista de percepções e atitudes que devemos nos atentar na formação e na prática dos juízes e das juízas, buscando fazer uma crítica de vários descompassos e equívocos fundamentais que a magistratura tem tomado nos últimos anos entre nós.”.
“Esse diálogo [entre os textos do jurista Hans Kelsen e Freud] pode contribuir decisivamente para que o operador do sistema de justiça abandone ilusões idealistas de dispensador de justiça, que muitas vezes, consciente ou inconscientemente, acabam por esconder projetos de poder, por mascarar pretensões totalizantes da vida social e da vida política. Esse diálogo também é valioso para capacitação dos operadores do Direito para o exercício da jurisdição, por meio de posturas que sejam democráticas e realistas, em favor não só de uma outra atitude dos operadores de justiça no cotidiano, mas também da configuração de todo sistema de justiça.”, encerrou o desembargador Roger Raupp.
Em continuidade, Gabriel Souza Cerqueira, doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), disse: “Cabe ressaltar o que Pierre Legendre, historiador e psicanalista francês, chama de função do intérprete. Os operadores do Direito, tanto juristas quanto do campo acadêmico em geral, cumprem um papel de intérpretes em relação à lei, é importante ressaltar isso. Nesse sentido, o conhecimento do Direito se aproxima do que o Pierre Legendre chama de uma ciência do comentário, e a lei aparece como um espaço lógico através do qual as interpretações têm que passar. Esse é um caminho por onde opera a reflexividade do operador do Direito, que como efeito retira do centro da lei sua existência puramente simbólica e seu enunciado puramente abstrato e confirma sua ação caso a caso. Um dos efeitos mais notórios dessas interpretações caso a caso no processo de hiperespecialização dentro do campo jurídico, que ocorre recentemente, é a hegemonia intelectual de uma ideia que o Direito é uma área fundamentalmente técnica. No cotidiano da prática do intérprete da lei não é incomum que esse discurso da fundamentação técnica seja apenas um disfarce para dar voz ao imaginário.”.
Por fim, a desembargadora Cristina Tereza Gaulia declarou: “O espaço do diálogo não é o espaço do juiz. Ele não sabe dialogar, ele sabe determinar. E pior, ele tem a crença de que ao determinar, ele fará o mundo da vida se modificar. Esse espaço proposto [na fala do desembargador federal Roger Raupp] é extremamente difícil. Temos que trazer mais esse diálogo.”.
Demais participantes
A juíza Simone Dalila Nacif Lopes, mestra em Saúde Pública pela Fiocruz, e a vice-presidente do Fórum Permanente da Criança, do Adolescente e da Justiça Terapêutica, juíza Raquel Santos Pereira Chrispino, mestra em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também estiveram presentes na mesa.
Para assistir ao encontro na íntegra, clique aqui.
Fotos: Jenifer Santos
05 de maio de 2023
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)