A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) promoveu nesta quarta-feira (28) a reunião de estreia do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual com o tema “Multiplicidade de famílias, subjetividade e a diversidade sexual.
O evento, realizado em conjunto com o Fórum Permanente de Biodireito, Bioética e Gerontologia e o Fórum Permanente de Saúde Pública e Acesso à Justiça, aconteceu no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura e teve transmissão via plataformas Zoom e Youtube, com tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Abertura
O diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), afirmou na abertura da reunião: “A invisibilidade é uma das maiores violências e nós estamos dando visibilidade e dignidade ao movimento que é um dos mais relevantes na nossa sociedade. Que esse Fórum inspire e transpire cidadania e tenho certeza de que sob a presidência do juiz Eric Scapim, nós teremos um Fórum atuante e que vai discutir questões atuais e contemporâneas da mais absoluta relevância”.
“Nessa data significativa de hoje, que tenhamos uma sociedade mais fraterna que reconheça as pluralidades dentro da singularidade da pessoa humana. Que tenhamos o pluralismo familiar como um dogma constitucional e que não cumprimos porque somos apenas solidários, cumprimos porque é um compromisso do cidadão frente a lei maior. É ela que nos impõe esses compromissos. Todos nós estamos vinculados ao princípio da solidariedade”, finalizou o diretor-geral da EMERJ.
A presidente do Fórum Permanente de Biodireito, Bioética e Gerontologia, juíza Maria Aglaé Tedesco Vilardo, doutora em Bioética, Ética aplicada e Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGBios/UFRJ), reforçou após a exibição de um emocionante vídeo sobre a Revolta de Stonewall, história que deu origem a data de 28 de junho: “É uma manhã histórica que estamos vivendo. Parabenizo o diretor-geral da Escola, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, por estar protagonizando esse dia de criação do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual. Um ato extremamente feliz, mas também de muita coragem em criar esse Fórum e colocar um jovem juiz à frente dele. O que estamos falando hoje é sobre o direito à vida. Temos a obrigação de distribuir justiça dentro da legislação vigente, o que não é uma tarefa fácil, já que as vezes a legislação é um tanto truncada e conservadora, embora tenhamos a Constituição Federal e as Convenções Internacionais que não são muito utilizadas, mas nos dão respaldo. Precisamos utilizar as convenções como uma boa doutrina, mesmo quando não ratificadas ou quando são apenas princípios”.
“Esse momento marca uma data especial, muitas conquistas, mas também marca que nós devemos continuar lutando porque o caminho ainda é longo. Hoje é um passo que a EMERJ dá, falando sobre esses temas, debatendo e fazendo com que, cada vez mais nós possamos estudar e entender essa realidade”, frisou a vice-presidente do Fórum Permanente de Saúde Pública e Acesso à Justiça, juíza Katylene Collyer Pires de Figueiredo, mestra em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz).
A desembargadora Ivone Ferreira Caetano, vice-presidente do Fórum Permanente de Biodireito, Bioética e Gerontologia, relatou: “Na minha infância, havia um vizinho que era homossexual. Ele sofria muito, a rua toda o discriminava. As mulheres depois do almoço sentavam do lado de fora do portão para conversar e falavam com ele, mas se tivesse um homem por perto elas não falavam com ele. Um dia eu vi um grupo de homens em frente a um armazém jogando pedras nele e em um amigo. Eu não entendia tanta maldade com ele”.
“Quando eu era magistrada atuante, caiu em minhas mãos um processo de um homossexual que pedia a adoção de uma criança. Foi o maior sofrimento, porque ninguém havia decidido sobre isso ainda. E uma juíza de Santa Catarina deu a primeira sentença. Me debrucei sobre a sentença dela e dei a minha. Foi a primeira do Rio de Janeiro. Este ano recebi uma homenagem do adotante e dessa criança. O reconhecimento levanta a autoestima de qualquer um. Foi assim que eu consegui viver até hoje”, encerrou a desembargadora Ivone Ferreira Caetano.
O presidente do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual, juiz Eric Scapim Cunha Brandão, especialista em Direito Público e Direito Privado pela EMERJ e em Psicologia Jurídica pela Universidade Cândido Mendes (UCAM) e mestre em Políticas Públicas e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), destacou: “Há muitos séculos existem diversos tipos de preconceito, de discriminação e de exclusão. Surge então esse Fórum, como uma luz para afastar um pouco as trevas da exclusão, da invisibilização e do preconceito. Gostaria parabenizar e agradecer o desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo por esse espaço, que é um ambiente coletivo de afeto, esclarecimento, informação e também de resistência”.
E concluiu o juiz Eric Scapim: “Agradeço também a oportunidade de estar aqui e pela a incumbência que me foi passada com muita honra de presidir esse Fórum e assim como falamos da pluralidade que existe na sociedade que precisa ser relembrada e pontuada, assim vai ser o nosso Fórum, com muita pluralidade, muita discussão o mais importante, muito afeto”.
Igualdade e dignidade humana no contexto do Judiciário
A desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) Salise Monteiro Sanchotene, membra do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual e conselheira do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pontuou: “Precisamos de espaços de diálogos e esse Fórum é essa possibilidade. Igualdade e justiça são temas de Direito Constitucional e também de direitos humanos. No Seminário ‘Mulheres na Justiça’, a ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Carmen Lúcia nos lembrou em sua palestra de encerramento que ‘o princípio da igualdade não é o mais importante da Constituição, cedendo proeminência jurídica ao princípio da dignidade humana, que se complementa com a igualdade. Porém, o princípio da igualdade é o que está por mais vezes repetido na Constituição, justamente em face da enorme desigualdade da sociedade brasileira’. É nessa perspectiva dos direitos humanos, profundamente afetados pela desigualdade, que certos grupos da sociedade se encontram desprotegidos e vivem nesse ambiente de insegurança e vulnerabilidade. Hoje é o dia do Orgulho Gay, uma data de afirmação da população LGBTQIAPN+ e de alerta que o preconceito exteriorizado a essas pessoas ocasiona desde o risco de vida, com estatísticas alarmantes, passando por dificuldades de empregabilidade, constituição de família, chegando até a discussões como, por exemplo, o uso de banheiros públicos dentro do Poder Judiciário”.
A desembargadora federal Salise Monteiro Sanchotene prosseguiu: “O CNJ publicou a Resolução nº. 175/2013, que dispõe sobre a habilitação, celebração de casamento civil ou conversão de união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo, considerando a resistência dos cartórios em fazer esse registro. Por mais que já tivéssemos decisão do STF, reconhecimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi preciso uma resolução determinando que os cartórios assim procedessem. Essa foi uma decisão emblemática do CNJ, em uma transição da atividade correcional para uma formulação de política pública. Também gostaria de destacar duas outras resoluções do CNJ. A primeira é a nº. 348/2018, que estabeleceu diretrizes e procedimentos a serem observados no âmbito criminal, em relação ao tratamento que há de se dar a população lésbica, gay, bissexual, transexual, travesti ou intersexo, no momento em que essas pessoas são custodiadas, acusadas, rés, condenadas, privadas de liberdade, em cumprimento de alternativas penais ou monitoradas eletronicamente, um ato normativo que também estamos sentindo dificuldade, porque na ponta, quem deve fazer isso, não está capacitado. A outra é a nº. 270/2018, que dispõe sobre o uso do nome social para pessoas transexuais e travestis, usuárias dos nossos serviços judiciários, membros, servidores, estagiários e trabalhadores terceirizados nos tribunais. Também temos dificuldade na ponta com essa resolução, para que essas pessoas possam usar seu nome social”.
“Há muito trabalho para ser feito no âmbito da capacitação. Avaliando o percurso até então trilhado pelos órgãos do Poder Judiciário vejo pela frente um longo caminho na igualação de direitos, na documentação e concretização desses direitos, mas estou certa de que o CNJ ainda irá proporcionar iniciativas importantes”, finalizou a conselheira do CNJ.
O vice-presidente do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual, juiz André Souza Brito, salientou: “Já foram feitos quase três mil atendimentos para redesignação de nome e gênero (pela Justiça Itinerante no campus de Manguinhos) e aqui eu peço ao CNJ para mudar o provimento, para autorizar que os cartórios façam essa requalificação de uma forma mais simples, que não seja exigidas tantas certidões, que seja possível a requalificação de menores de idade e que não haja a necessidade de autorização do cônjuge ou dos filhos, é um apelo meu”.
O advogado e professor Sandro Gaspar Amaral, especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Unesa, destacou: “Não me surpreende saber que a conquista desse Fórum Permanente vem de uma direção de Marco Aurélio Bezerra de Melo. Quem o conhece sabe que amor no coração, valorização da vida, tudo isso o define. Ele não é só uma mente brilhante. Hoje é uma prova disso”.
“Nós ouvimos falar sobre igualdade de gênero, mas infelizmente quando se toca em gênero é só no gênero binário cis. Nós não levamos essa discussão adiante. As pessoas falam, ‘mas na minha cabeça’, mas o mundo não é sobre suas cabeças, o mundo é sobre o impacto que essa norma trará no mundo. Precisamos ressignificar. ‘A família é a base da Constituição’, que família é essa? Qual o conceito? Qual o conceito de gênero? Quando falamos em casamento homoafetivo, por exemplo, estamos homenageando o binarismo de gênero. Na Argentina, se chama casamento igualitário. Somos pessoas e como pessoas somos iguais, adjetivos existem para homenagear diferenças, hierarquizações. Ser uma pessoa tem que bastar”, afirmou em sequência Sandro Gaspar Amaral.
E concluiu: “Não adianta a magistratura ou o CNJ nos apoiar e o Ministério Público não autorizar a habilitação do casamento entre pessoas que não fossem da heteronormatividade. Aliás, a sigla LGBTQIAPN+ não é uma sigla por identificação, é uma sigla por exclusão. Nós contrariamos a norma, aquilo que o patriarcado hétero cis branco determinou que deveria existir. Somos os excluídos do sistema. Só sabe dar valor a liberdade quem não nasceu livre”.
Visibilidade, respeito e reconhecimento na sociedade
O psicólogo Pedro Paulo Bicalho, membro do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual, doutor em Psicologia pela UFRJ e presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), frisou: “Se hoje nós somos um país que possuí uma série de avanços, nós também somos um país que possui uma série de manicômios que possuem outros nomes, entre eles, as chamadas comunidades terapêuticas que são lugares que não são somente para pessoas com uso abusivo de drogas, são lugares também de produção de cura gay e de construção de terapia de conversão e nós temos vários relatórios que evidenciam isso, em especial as inspeções nacionais do ano de 2011 e 2018. Portanto, lutarmos contra os manicômios e a favor de uma política antimanicomial é também lutarmos em favor das despatologização das identidades LGBTQIAPN+”.
Thamirys Nunes, membra do Fórum Permanente de Direito da Antidiscriminação da Diversidade Sexual e presidente da ONG Minha Criança Trans, relatou: “Não dá para ter calma quando nossos filhos não usam o banheiro da escola por medo de apanhar ou quando se mutilam porque não são respeitados. É preciso reconhecer que crianças e adolescentes trans existem. E cabe a todos nós proteger essa infância e essa adolescência, reconhecer que ela existe e oportunizá-la, para que ela ocupe espaços e tenha direito a um desenvolvimento sem violência e violações. Estamos preparados para esse discurso? Para entender sobre isso sem que nossas crenças e pessoalidades interfiram em nosso julgamento? Infelizmente, como mãe de uma criança trans e representante da ONG Minha Criança Trans, que tem 580 famílias de crianças e adolescentes trans do Brasil inteiro, lamento em dizer que recuamos do acesso à justiça porque sentimos que seremos condenados antes de sermos escutados. A justiça não está preparada para me olhar e não questionar minha sanidade mental quando falo que tenho uma criança trans. A justiça não está preparada para reconhecer o direito do menor de idade a sua identidade de gênero. Não é apenas preparada em termos de sensibilização, mas em termos técnicos. A retificação de nome e gênero é o primeiro passo da cidadania de uma pessoa e porque essa cidadania não é permitida de uma forma tão humanizada as crianças e adolescentes trans? É preciso que todo Poder Judiciário saiba olhar para nossas famílias e nos respeitar”.
“Um dos efeitos principais das nossas lutas enquanto segmento e categoria de diversidade, é o direito a complexidade, ou seja, o direito de sermos entendidas como pessoas complexas como qualquer outra pessoa. Acho que esse direito a complexidade nos ajudaria a entender que as composições de afinidade e aliança também são possíveis porque também são complexas. Temos que desmitificar a ideia de uma narrativa única e entender que somos pessoas complexas, assim como todas as pessoas e que temos o direito de viver na nossa complexidade com as garantias de não sermos violadas por isso”, reforçou Céu Cavalcanti, mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (CRP-RJ).
“Existe o mundo real e o mundo que as pessoas acreditam que seja o mundo das pessoas trans. A maioria das pessoas que são cis acreditam no ‘Mundo da Alice’ e precisamos acabar com isso. As pessoas não têm noção do que é receber uma certidão de nascimento retificada. Sem um juiz para fazer isso, a gente não teria nascido. Existe um mundo que vocês não conhecem e que faz o tempo inteiro com que sejamos apagados. Todas as pessoas que fizeram a retificação de gênero e nome, a readequação civil, todas, sem exceção, não existem para o sistema brasileiro. Porque quando fizeram o Censo eu só tive duas alternativas, dizer se era homem ou mulher. Não existe a pessoa trans. Ou seja, nós sumimos. Nossos números, que nos ajudariam a ter políticas públicas reais, não existem. E isso a Justiça precisa rever. Na maioria das vezes nos sentimos abandonados. Dizem que a população trans é doente, mas é a sociedade que nos adoece. Somos o que somos. Precisamos de mais marcos como essa reunião, como esse Fórum”, encerrou Glauco Vital, ativista e presidente cofundador da Liga Transmasculina Carioca João W. Nery.
Assista
Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=pbFubzK_OuQ
Fotos: Jenifer Santos
28 de junho de 2023
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)