A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), por meio do Fórum Permanente de Segurança Pública e Execução Penal, do Fórum Permanente de Estudos Constitucionais, Administrativos e de Políticas Públicas Professor Miguel Lanzellotti Baldez e do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas e Acesso à Justiça (NUPEPAJ), promoveu, nesta sexta-feira (1º), o encerramento do encontro “Democracia, defesa e segurança pública: a efetivação do Estado Democrático de Direito”.
A reunião, promovida em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional (PPGDC), da Universidade Federal Fluminense (UFF), aconteceu no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura, com transmissão via plataforma Zoom e tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Abertura
O advogado Taiguara Libano Soares, professor permanente do PPGDC-UFF, professor de Direito Penal do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), declarou: “Espero que esse segundo dia seja novamente um dia proveitoso e que possamos digerir os debates e frutificar, para que as instituições policiais e as Forças Armadas possam caminhar no sentido de estarem em mais conformidade com o Estado Democrático de Direito”.
“Esse evento é muito importante e relevante para estimular a reflexão crítica sobre o momento que estamos vivendo no Brasil. Proporciona assim nosso diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, com a realização desse evento, a abertura e a intersecção do conhecimento jurídico para os múltiplos vieses políticos que integram, no plano jurídico, a prestação jurisdicional, porque toda prestação jurisdicional, e isso já sabemos hoje, tem uma posição política por trás. A prestação jurisdicional, então, vai dessa maneira capacitar melhor os magistrados, a jurisdição vai se tornar mais justa e conforme com as necessidades reais da sociedade brasileira, na medida em que passam todos os operadores do Direito a compreender de forma mais clara, que decisões de cunho estritamente político, e que visam distribuir recursos públicos escassos para aquilo que o grupo que controla o aparelho estatal julga mais importante, é o que está sempre por trás da construção de políticas públicas”, destacou a presidente do Fórum Permanente de Estudos Constitucionais, Administrativos e de Políticas Públicas - Professor Miguel Lanzellotti Baldez, desembargadora Cristina Tereza Gaulia, doutora em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA).
Ana Tereza Basílio, vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio de Janeiro (OAB-RJ), e o advogado Carlos Eduardo Rebelo, professor do IBMEC e da UCAM e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), também compuseram a mesa de abertura do segundo dia do evento.
Painel 2 – Novos arranjos institucionais e Reforma Republicana: defesa e segurança como políticas de Estado e não de governo
Mesa 1
A ministra do Superior Tribunal Militar (STM) Maria Elizabeth Rocha, doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirmou: “O mundo assiste perplexo o ressurgimento, no cenário internacional, de partidos políticos que refutam conquistas democráticas tão arduamente conquistadas pela humanidade e propõe em seu lugar o totalitarismo para resolução dos problemas, eu indago como enfrentar essa crise de valores que o Brasil também, lamentavelmente, não está imune?”.
A ministra Maria Elizabeth Rocha prosseguiu: “Muitos são os modelos de governos democráticos, portanto, fica mais fácil definir a democracia em termos do que ela, definitivamente, não é. Democracia não é autocracia, tampouco ditadura onde só uma pessoa governa. Não é oligarquia onde quem governa é um pequeno segmento da sociedade. Doutrinariamente ela é definida como governo da maioria, mas trata-se de um conceito obsoleto para o nosso constitucionalismo contemporâneo se significar que os interesses das minorias serão ignorados. Uma democracia seria então, ao menos em tese, um governo que representa todos os cidadãos, indistintamente, de acordo com suas diferenças e vontades”.
“A democracia não é uma forma perfeita de governar ou que agrade por completo, mas suas vantagens superam as desvantagens. Quais seriam as alternativas? É por essa razão que pensadores têm se preocupado com a crise dos regimes democráticos e em suas obras lemos que o regime democrático pode ser, e frequentemente o é, subvertido nas mãos de líderes de tendência autoritária, que terminam por transformá-lo em um regime autoritário ou autocrático, sem necessariamente precisar se valer das armas ou de um golpe de Estado clássico. A hecatombe da democracia adviria de medidas revestidas de nobres intenções, como combate à corrupção e proteção à segurança nacional, cobertas por vernizes de legitimidade e até mesmo avalizadas por parlamentos ou cortes de justiça. E sobre o argumento de preservar ou salvar a democracia, direitos constitucionais arduamente conquistados seriam ultrapassados, o que representaria um retrocesso que demandaria o esforço de gerações para o seu reestabelecimento. Refletir sobre a democracia implica em considerar a interação entre a coesão social e a própria legitimidade. A primeira objetiva uma igualdade negada pela sociedade a muitos cidadãos e a segunda reproduz um sistema de garantia que os autoriza a exercerem suas liberdades em uma ordem política de justiça e tolerância regrada. Enquanto a ideologia democrática visa salvaguardar o bem-estar público, por intermédio do poder popular, a lógica da coesão social visa manter o bem-estar social e permitir que o poder do povo subsista. É um equilíbrio de forças entre o individualismo e o coletivismo, necessário para a sobrevivência das três dimensões do Direito e é dever do Estado assegurar a comunidade a abertura da esfera política e decisional ao espaço público. A democracia é mais que as eleições, é a confiança depositada nas instituições estatais e o nível de atuação e participação dos participantes do contrato social”, finalizou a ministra do STM.
“Algumas políticas de governo são tão boas que podemos desejar que elas se transformem em políticas de Estado, mas é preciso cuidado. Existem políticas de Estado que deveríamos desejar que políticas de governo façam a contenção dessas políticas de Estado, como o caso da grande letalidade produzida pelo Estado brasileiro. Boa parte dela ocorre a partir de ações policiais, mas não se finda aí. Não vamos saber, por exemplo, quantas pessoas estão morrendo no sistema prisional por falta de atendimento médico. Isso não entra sequer em estatística”, pontuou o delegado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro Orlando Zaccone, doutor em Ciência Política pela UFF.
O delegado da Polícia Civil salientou em sequência: “A polícia mata muito, todos nós sabemos, mas como delegado percebi que existe uma forma jurídica que é trabalhada no Estado brasileiro para dar legitimidade a essa matança, que é absurdamente grave e chocante. Para ter uma ideia, em todos os países que ainda têm pena de morte no mundo são produzidas anualmente, em média, 500 pessoas executadas. O Rio de Janeiro, no ano passado, matou 1.330 pessoas em ações policiais. Na Bahia foram 1.400. Isso não chega a nos escandalizar, e enquanto não sentirmos isso como algo que ofende a efetivação do Estado Democrático de Direito, não avançaremos, porque isso não pode ser natural. Essa grande letalidade a partir de ações policiais no Brasil, porque a polícia mata, mas não mata sozinha, ela é política de governo ou de Estado? De Estado. Primeiro, porque se mantém durante um período gigantesco, é algo sistêmico e ocorre independente do governo ser de direita ou de esquerda. Ou seja, ser política de Estado, não necessariamente é algo melhor que uma política de governo. O grande número de encarcerados também é outro exemplo de uma política de Estado, com grande número de pobres e negros, o que mostra outra tendência, de que essas parcelas da sociedade são mais criminalizadas. Infelizmente, o modelo punitivo representa a estrutura social e, em uma sociedade de classes e desigualdades, o castigo será construído de uma forma desigual e é por isso que o pobre e o negro são o objeto da reprimenda do Estado de forma violenta”.
“Nós permitimos em algum momento, acredito que na Constituição de 88, a construção de uma democracia militar brasileira. Os militares buscaram um espaço de se manter nas relações de poder do nosso país pós-ditadura e esse espaço foi a segurança pública. A manutenção das forças armadas para a garantia da lei e da ordem. O debate da desmilitarização tem sido feito de uma forma completamente equivocada. A desmilitarização não irá trazer a redução da violência policial. A operação mais letal da história do Rio de Janeiro foi da Polícia Civil. No Brasil temos um modelo que não existe em lugar nenhum do mundo, um modelo próprio e arcaico, que vem de antes da República. Quando falamos de arranjos institucionais, precisamos falar de desmilitarização, carreira única e ciclo completo. Precisamos de uma polícia desmilitarizada para devolvermos o comando para os governadores, sem gerência do exército. Carreira única, para o policial que entra na base acumular conhecimento e, um dia, poder ser comandante. E ciclo completo, porque é uma mentira que a Polícia Militar não investiga e que a Polícia Civil não faz operação ostensiva, e isso é necessário para que possamos avançar no comprometimento dessas instituições com o projeto de segurança”, concluiu Orlando Zaccone.
O contra-almirante reformado da Marinha do Brasil, Antônio Nigro, encerrou a primeira mesa: “Ter conexão de defesa da pátria com segurança pública não é novidade, vem de 1891. Segurança pública e defesa nacional têm clientes diferentes. A segurança pública tem como principal cliente o cidadão, o indivíduo, a propriedade. A defesa tem como cliente a sociedade como um todo e seus interesses e está voltada para a segurança internacional, não está voltada para a segurança pública. A defesa nacional vincula-se, inexplicavelmente, com a segurança internacional. As forças armadas são indestrinçáveis da segurança internacional. Para mim, este é um grande equívoco político da nossa república, provavelmente pelo fato de a república ser fruto de um movimento militar. Defesa nacional e segurança internacional são duas faces da mesma moeda. Em sociedades democraticamente mais amadurecidas, essa moeda se chama estratégia”.
O advogado Carlos Eduardo Rebelo, professor do IBMEC e da UCAM e doutor em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), também compôs a mesa. A presidência ficou a cargo da desembargadora Cristina Tereza Gaulia.
Mesa 2
A advogada Ângela Borges Kimbangu, presidente da Associação Advocacia Preta Carioca, vice-presidente da Comissão dos Direitos da Crianças e do Adolescente do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Educação Jurídica (Ibrapej), afirmou: “Todas as agruras desse sistema explodem em nossos corpos pretos. A violência já está posta. Nós temos uma questão de micro agressões sistematizadas, continuadas e que o tempo todo precisamos de alguma forma estar nos defendendo. Alegar que é ‘mimimi’ dos pretos demonstra incapacidade intelectual, que se desconhece a história e a importância dos pretos na construção do Brasil. Os pretos sentem a repressão diariamente, mas nos últimos tempos, temos visto no Estado brasileiro o aumento da mortalidade das crianças pretas. Os pretos nunca entenderam que pessoas brancas são inferiores ou piores, mas o contrário existe. Gente que olha para pessoas pretas e acham que elas são matáveis”.
O coronel reformado da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro Ibis Silva Pereira, membro do Fórum Permanente de Segurança Pública e Execução Penal e doutor em História Política pela Uerj, afirmou: “Estamos aqui discutindo a efetivação do Estado Democrático de Direito 35 anos depois da Constituição, que nasce tentando superar 21 anos de ditadura, tentando pensar esse ponto central que é administração do monopólio da violência. Isso ainda ser um problema é terrível. Os nossos números são vergonhosos para um país que seja efetivamente uma democracia. Saúdo efusivamente a EMERJ pelo desafio de pensar essas questões”.
“Precisamos aprender que não teremos segurança sem justiça. Não é a polícia, não é o Direito que traz segurança, é a justiça, é quando uma sociedade se organiza em torno da ideia de justiça. Não é possível pensar nisso sem pensar em igualdade. Estamos discutindo a efetivação do Estado Democrático de Direito, pensando a questão pelo viés do monopólio da violência, em um país que entre 20 e 30 milhões de pessoas estão passando fome, 70 milhões estão em situação de insegurança alimentar. Segurança começa por aí, na capacidade de prever sua existência e sua continuidade. Ter emprego, salário, educação, casa, também é segurança. Para essas pessoas, a expressão Estado Democrático de Direito não faz sentido”, concluiu o coronel Ibis Silva Pereira.
Também compuseram a última mesa da reunião o delegado da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro Leonardo Affonso, presidente do Sindicato dos Delegados da Polícia do Estado do Rio de Janeiro (Sindelpol-RJ), e o advogado Taiguara Libano Soares. O advogado Carlos Eduardo Rebelo realizou a presidência.
Assista
Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=GKk0GRiSwHs
Fotos: Jenifer Santos
1º de setembro de 2023
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)