Nesta quarta-feira (4), o Fórum Permanente de Saúde Pública e Acesso à Justiça e o Fórum Permanente dos Direitos das Pessoas com Deficiência, ambos da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), promoveram o encontro “Saúde Mental e Direito”.
O evento aconteceu presencialmente no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura. Houve transmissão via plataforma Zoom, com tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Abertura
A juíza Renata de Lima Machado, presidente do Fórum Permanente de Saúde Pública e Acesso à Justiça e mestra em Saúde e Direitos Humanos pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz (ENSP/Fiocruz), pontuou: “Este evento é muito gratificante devido à sua temática, e hoje vamos tratar de um assunto que envolve a todos nós, especialmente nos dias atuais: a saúde mental. Vamos abordar esse tema sob a perspectiva do Direito e, para isso, idealizamos e trouxemos diversos tópicos para fazer deste evento um dia de aprendizado. Estou muito feliz por termos conseguido concretizar esta reunião, junto com a minha amiga juíza Adriana Laia Franco. Estamos muito satisfeitas por poder contar com um público tão generoso. Gostaria de agradecer a presença dos nossos convidados e palestrantes, em especial ao querido desembargador Cláudio Luís Braga Dell’Orto, uma pessoa que admiro há muito tempo por sua atuação sempre muito presente em nosso tribunal e pelo apoio aos nossos magistrados. Ele é alguém por quem tenho grande admiração e que inaugurará nossas atividades hoje, abordando o tema dos Direitos Humanos e a saúde mental”.
“Gostaria de iniciar dizendo que, conceitualmente, o termo ‘saúde mental’ está relacionado à forma como uma pessoa reage às exigências, aos desafios e às mudanças da vida, e ao modo como ela harmoniza suas ideias e emoções. Diariamente, vivenciamos uma série de emoções, boas ou ruins, que fazem parte da vida de todos, e a forma como lidamos com essas emoções reflete a qualidade da nossa saúde mental. O evento de hoje, com a união dos dois Fóruns Permanentes, possibilitará que pensemos a saúde mental sob duas perspectivas: como uma questão de saúde pública e como causa de estigmas sociais que precisam ser enfrentados e combatidos, e também sob o aspecto das pessoas com deficiência. A doença mental, então, surge como consequência do sofrimento e das dificuldades causadas pelos estigmas existentes em relação às pessoas com deficiência. Sabemos que a acessibilidade para pessoas com deficiência é a possibilidade de transpor barreiras que dificultam sua participação efetiva nos contextos sociais. O papel da inclusão é fazer com que a sociedade seja formada por diferentes pessoas, cada qual com sua singularidade. Ainda assim, nos deparamos com muitos preconceitos relacionados ao padrão social daquilo que é tido como ‘normal’, e o impacto disso nas pessoas com deficiência inevitavelmente afeta sua saúde mental e sua participação como sujeitos na sociedade” reforçou, a juíza Adriana Laia Franco, presidente do Fórum Permanente dos Direitos das Pessoas com Deficiência e mestra em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz.
Palestra de Abertura - Direitos Humanos e Saúde Mental
O vice-presidente do Conselho Consultivo da EMERJ, desembargador Cláudio Luís Braga Dell’Orto, magistrado supervisor de Tecnologia da Informação da EMERJ e mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes (UCAM), destacou: “Acredito que, quando falamos de Direitos Humanos e saúde mental, estamos abordando uma das garantias constitucionais fundamentais, que é o direito à saúde. Muitas vezes, pensamos no direito à saúde em aspectos que são talvez mais visíveis, mas isso não significa que esses aspectos sejam mais importantes. É óbvio que quem quebrou uma perna ou está com um membro dilacerado vai ao médico e pode até ser levado para uma emergência, porque está enfrentando uma situação crítica e visível, capaz de ser percebida em sua intensidade e gravidade por qualquer pessoa. No entanto, quando falamos do direito à saúde e também da saúde mental, muitas vezes estamos lidando com problemas que não são visíveis. Pior ainda, esses problemas frequentemente buscam ser ocultados. A própria pessoa que está enfrentando uma dificuldade dessa natureza pode se sentir envergonhada de compartilhar essa situação com sua rede de apoio ou pode não ter uma rede de apoio capaz de fornecer o suporte necessário. Além disso, muitas vezes, a pessoa não pode revelar sua dificuldade, especialmente no ambiente de trabalho, onde a necessidade de sobrevivência pode impedir a abertura sobre questões de saúde mental. Quando falamos em Direitos Humanos, estamos tratando do mínimo existencial para qualquer pessoa. Muitas vezes, pensamos em Direitos Humanos com ênfase na liberdade, mas devemos lembrar que há outros valores essenciais”.
“Tudo contribui para gerar em nós uma ansiedade desenfreada. Do nada, acordamos angustiados e, de repente, começamos a julgar, descarregar e rotular os outros. O desembargador Cláudio Luís Braga Dell’Orto falou sobre a importância de ouvir o outro, e isso é muito sério. Nós escutamos e refletimos e pensamos: ‘Eu sou uma pessoa que estuda. Sou uma pessoa que corre atrás. Sou uma pessoa humana’. E, então, esperamos que o outro entenda o que estamos dizendo e, pior ainda, esperamos que compreenda o que estamos sentindo, quando nem nós mesmos conseguimos entender. Temos nossa própria visão, e, de repente, cinco pessoas podem ter uma visão diferente da nossa. Mas por que isso acontece? Porque cada um é um indivíduo. E olhem para onde estamos indo: estamos nos dirigindo para uma massificação das redes sociais com um conteúdo de informações que não é conhecimento; são coisas distintas, e isso precisa ficar bem claro. Informação não é a mesma coisa que conhecimento”, salientou a presidente da mesa, a juíza Maria Cristina Barros Gutierrez Slaibi, vice-presidente do Fórum Permanente da Justiça na Era Digital, membra do Fórum Permanente de Saúde Pública e Acesso à Justiça e do Fórum Permanente de Bioética, Biodireito e Gerontologia e doutora em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade do Museu Social Argentino (UMSA)
Evidências, Eficácias e Efetividade do Canabidiol
A farmacêutica Cláudia Garcia Serpa Osório de Castro, pesquisadora titular da Fiocruz e doutora em Saúde da Criança e da Mulher pela Fiocruz, expôs: “Neste momento, já temos mais de 650 compostos químicos diferentes extraídos de todas as partes da planta, incluindo canabinoides, terpenos e outros compostos como alcaloides, hidrocarbonetos, flavonoides e aldeídos. Todos esses são chamados de fitocompostos. Além das substâncias com efeitos farmacológicos ativos, há um conjunto de outras substâncias que favorecem essa ação farmacológica. Por isso, a planta é considerada uma fonte interessante: ela traz outros compostos que têm um efeito sinérgico e produtivo, conhecido como efeito comitiva, que é a potencialização de uma molécula ativa quando outras estão presentes. Isso gera um efeito positivo, possibilitando que os compostos possam ser utilizados em doses menores, pois seu efeito é amplificado por essa sinergia. No entanto, também enfrentamos problemas com o uso da planta”.
Autismo: Terapias e Diagnóstico Tardio
A médica Gilse Prates, perita judicial e especialista em Neuropsiquiatria Geriátrica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), relatou: “Para ilustrar a prevalência do autismo entre 1969 e 2023, vamos analisar a população do Brasil e o impacto social correspondente. Em 1969, a população brasileira era de 87 milhões de pessoas, com uma incidência de 0,04%, o que significava aproximadamente 34.800 autistas na população. Em 2023, a população aumentou para 214 milhões, e a prevalência subiu para 2,14%. Isso implica que quase 6 milhões de brasileiros são autistas, o que é muito sério. O aumento da prevalência pode ser atribuído a várias questões em movimento. Os critérios de diagnóstico melhoraram e estão cada vez mais robustos, com testes e validações mais precisos. A disponibilidade de profissionais e serviços habilitados está crescendo devido à demanda reprimida. Além disso, muitos diagnósticos iniciais eram equivocados, o que levou a uma substituição dos diagnósticos. A expansão das informações e o aumento da demanda também contribuíram para esse fenômeno”.
A juíza Elizabeth Maria Saad, membra do Comitê Estadual de Saúde do CNJ/RJ e mestra em Saúde e Direitos Humanos pela ENPS/Fiocruz, participou da mesa como debatedora.
As Barreiras Provocadas pelas Doenças Mentais
A membra do Fórum Permanente dos Direitos das Pessoas com Deficiência, a advogada Deborah Prates, presidente da Comissão de Diversidade do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e psicanalista clínica pela Associação Brasileira de Estudos e Pesquisas em Psicanálise (ABEPP), destacou: “A audiodescrição é obrigatória, conforme estabelecido pela Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, portanto, não é opcional. Trata-se de um direito que deve ser exigido, e não simplesmente solicitado. É uma grande alegria estar aqui na minha Escola, a EMERJ, a qual tenho um carinho especial, pois realizei duas pós-graduações aqui e crescemos juntas. Fui a primeira pessoa cega a frequentar a Escola como aluna. Gostaria de ressaltar que nós não estamos na polis, estamos na vida privada. Por exemplo, nossas calçadas são extremamente altas, o que dificulta o acesso para cadeirantes, pessoas que usam muletas e bengalas, famílias com carrinhos de bebê, e aqueles que transportam mercadorias sobre rodas. A ausência de rampas e a presença de calçadas elevadas refletem um capacitismo evidente. O capacitismo é uma forma de preconceito que reduz as pessoas com deficiência à sua condição, e esse olhar reducionista é um dos fatores que nos exclui, pois a falta de acessibilidade nos mantém afastados do convívio social”.
A juíza Katylene Collyer Pires de Figueiredo, vice-presidente do Fórum Permanente de Saúde Pública e Acesso à Justiça e mestra em Direitos Humanos pela ENSP/Fiocruz, conduziu a presidência da mesa e reforçou: “É com grande prazer que presido esta mesa neste evento conjunto, abordando um tema tão sensível como a saúde mental e suas implicações para o Direito. Como vimos pela manhã, todos nós, magistrados, enfrentamos muitas dúvidas. Em alguns casos, a área da saúde não compreende plenamente as exigências que fazemos, e às vezes não fazemos exigências porque não entendemos o motivo do pedido. Infelizmente, lidamos com muitas fraudes, o que nos impede de confiar cegamente em qualquer indicação ou diagnóstico. Por isso, frequentemente solicitamos uma complementação e o apoio da nossa perícia. Os quatro temas que abordaremos à tarde são de extrema importância e têm relevância tanto para a área do Direito quanto para a Saúde, bem como para a aplicação prática desses conceitos na vida dos operadores do Direito e na população em geral. A saúde mental é um aspecto muitas vezes negligenciado, e muitas pessoas relutam em admitir que enfrentam problemas dessa natureza. Portanto, é uma questão delicada que devemos tratar com a máxima clareza e sensibilidade”.
Saúde Mental de Crianças e Adolescentes e a Violência nas Escolas
A juíza Vanessa de Oliveira Cavalieri, titular da Vara da Infância e Juventude da Capital e criadora do Protocolo “Eu te Vejo”, pontuou: “Hoje sabemos que o trauma decorrente do bullying pode durar até 50 ou 60 anos na vida do indivíduo. Uma pesquisa realizada por uma universidade no Reino Unido identificou sintomas de estresse pós-traumático em pessoas idosas, resultantes do bullying que sofreram na infância. Esse estudo longitudinal, com duração de 15 anos, confirmou que o trauma do bullying pode perdurar por pelo menos 40 anos. A criança que passa por esse sofrimento psíquico experimenta uma situação comparável a uma pessoa em tortura, e muitas vezes ninguém percebe o que está acontecendo. Nem a escola nem a família notam o problema. Vivemos em um momento de parentalidade extremamente disfuncional, e as escolas frequentemente são as primeiras a identificar problemas relacionados a pais permissivos, negligentes e distraídos que não percebem o que está acontecendo sob seus próprios narizes. A criança ou adolescente, então, acaba se refugiando no pior lugar possível para alguém desacompanhado: nas telas, redes sociais e jogos online, sem nenhuma supervisão adulta. Nesse ambiente virtual e perigoso, ela busca o que sempre procurou: amigos, pares e um sentimento de pertencimento. Esses amigos virtuais são, muitas vezes, outros adolescentes igualmente adoecidos, com histórias de rejeição, exclusão e bullying”.
Racismo e saúde mental
O enfermeiro, professor de Saúde Mental na Unigranrio e autor do livro "Meu Teto é de Estrelas", Pedro Vidal, especialista em Saúde Mental e Sociologia Urbana pela Uerj, declarou: “O tema que vou tratar, que é o racismo e a saúde mental, me fez refletir sobre qual caminho seguir, pois é muito amplo. Discutir o que vem antes ou depois seria redundante. Prefiro focar nas dificuldades de suporte na rede de saúde e como a falta de investimento tem influenciado o adoecimento da população. Ao mesmo tempo, devemos considerar como o Estado tem lidado com os corpos pretos na cidade e como isso tem contribuído para o adoecimento dessas pessoas. Faço esta introdução tendo em mente os dias de operações nas comunidades da Maré, que impediram que as pessoas chegassem aos tratamentos, aos trabalhos e às escolas. Eu já fui enfermeiro de um CAPS na região, sei que em dias de operação ninguém conseguia chegar para o tratamento, ou chegava em estado crítico devido ao translado. Isso prejudicava bastante meu trabalho, pois sempre digo que não posso medicar o sofrimento real das pessoas. A realidade dessas pessoas precisa ser alterada em um contexto mais amplo, que é o macrossocial. Como tratar uma pessoa que sofre devido a uma situação concreta, como ouvir tiros desde as 3h da manhã, quando a consulta está marcada para às 9h30? Esse é um exemplo do impacto do racismo na saúde mental dessas pessoas”.
Internações Psiquiátricas à Luz do Direito
A juíza Isabel Teresa Pinto Coelho Diniz, doutora em Direitos Humanos e Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, concluiu: “Não é possível falar de internação psiquiátrica sem mencionar a Lei 10.216, que instituiu a reforma psiquiátrica brasileira. O objetivo dessa lei era extinguir os manicômios judiciários e hospitais psiquiátricos no Brasil, resultado de um movimento de profissionais de saúde mental que estavam exaustos com as condições desumanas nos hospitais psiquiátricos. O livro e o documentário de Daniela Arbex retratam bem as condições precárias desses hospitais. Esse movimento começou na década de 60 e culminou com a elaboração de um projeto de lei em 1989, que só foi aprovado em 2001, após anos de tramitação. A lei foi inspirada em uma legislação italiana e visava a extinção dos manicômios, conforme previsto no projeto. No entanto, durante o processo legislativo, a extinção dos hospitais psiquiátricos públicos não foi explicitamente mencionada. Apesar disso, a extinção ocorreu de forma progressiva, resultando na eliminação de cerca de 60 mil leitos”.
Assista
Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=PoCdDEpsOJE e https://www.youtube.com/watch?v=JdqCZxrLsmk
Fotos: Jenifer Santos e Maicon Souza
04 de setembro de 2024
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)