A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) promoveu nesta segunda-feira (08) o encontro “Suprema Corte dos EUA: estrutura, composição e poder decisório”.
A reunião aconteceu presencialmente no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura, com transmissão via plataforma Zoom e tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Abertura
O diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), realizou a abertura do evento e declarou: “A Escola da Magistratura traz hoje a maior autoridade do Brasil sobre os estudos da Suprema Corte dos Estados Unidos. Uma Corte que influenciou muito nosso constitucionalismo. O professor João Carlos Souto fez uma pesquisa desde os primórdios da Suprema Corte americana até a contemporaneidade e irá compartilhar esse conhecimento conosco”.
Suprema Corte dos Estados Unidos e o Direito Constitucional Brasileiro
João Carlos Souto, diretor da Escola Superior da Advocacia-Geral da União (AGU), professor de Direito Constitucional da UDF-Brasília e doutor “summa cum laude” em Direito pela CEUB, afirmou: “Falar sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos é falar um pouco também sobre nosso Direito Constitucional. A Corte norte-americana, a Constituição norte-americana, se projetou no Direito brasileiro em razão da geniosidade de Rui Barbosa, que para muitos foi o principal redator da Constituição de 1891, a primeira Constituição Republicana. Isso em uma época em que o mundo, especialmente a América do Sul, era francófilo”.
“Nesse contexto, Rui Barbosa já conhecia, citava e se valia do Direito norte-americano para moldar a Constituição de 1891, que incorporou alguns valores do constitucionalismo norte-americano. Vou citar quatro deles, como a federação e o bicameralismo federativo, com o Senado representando os estados e a Câmara representando o povo, feito para equilibrar o Legislativo, algo absolutamente norte-americano, porque nada tem a ver com o Senado romano. Outra influência é o presidencialismo, nunca antes no mundo havia se usado essa expressão. E a Suprema Corte, encarregada de resolver os conflitos entre estados e de uniformizar o Direito no plano nacional, que é o que o Supremo Tribunal Federal (STF) vem fazendo”, prosseguiu o diretor da Escola Superior da AGU.
O Judiciário na Constituição dos Estados Unidos
O professor João Carlos Souto frisou: “O Judiciário na Constituição norte-americana veio resolver um grava defeito da Confederação, que era a falta de um Judiciário nacional, que desse uma interpretação conclusiva e definitiva, que evitasse os conflitos. Os seis capítulos dedicados ao Judiciário, que também estabelecem a Suprema Corte, foram escritos por Alexander Hamilton, um dos principais pais fundadores. Ele defende a independência do Poder Judiciário, que muitos não conseguem entender até hoje. Não haveria separação de poderes sem um Judiciário forte, autônomo e independente. A teoria da separação de poderes é creditada a Montesquieu, em parte também a John Locke e Sócrates. Mas quem implementou foram os Estados Unidos. Nenhum outro Estado havia antes implementado a separação de Poderes e isso é muito importante para entendermos a questão da competência da Suprema Corte para a revisão judicial, que nós chamamos de controle de constitucionalidade. Hamilton falava em garantias para magistrados, funcionamento do Judiciário e escolha de seus membros e uma referência na defesa da independência e da revisão judicial. Então, a Constituição norte-americana foi extremamente inovadora, ela inaugurou e concretizou o que se pensou no Iluminismo”.
“O capítulo 78 da Constituição dos Estados Unidos traz a expressão ‘The least dangerous branch’: o Poder menos perigoso. Por quê? Os constituintes diziam que a última palavra do Judiciário era complicada, por ser muito poder. Hamilton afirmava que isso não era um problema, porque o Judiciário seria o Poder menos perigoso, já que lhe faltava a bolsa, o dinheiro, e a espada, para implementar as decisões. Esse foi o argumento para fazer valer a revisão judicial na Constituição”, salientou o diretor da Escola Superior da AGU.
O professor João Carlos Souto pontuou em sequência: “A Constituição norte-americana é denominada pela doutrina como negativa, não pelo sentido pejorativo do termo, mas porque nega ao Estado interferir na vida do cidadão. É uma Constituição enxuta e o Judiciário também o é. O que ela trata a respeito do Judiciário? Fala da irredutibilidade de vencimentos, que temos no Brasil; fala da vitaliciedade, que lá é levado ao pé da letra; não fala sobre o controle de constitucionalidade, que enriquece o Caso Marbury vs Madison, de 1803, que inaugurou o controle de constitucionalidade, fruto de uma interpretação sistemática da Constituição e da função do Judiciário, que é justamente dizer o que é a lei e a Constituição é uma lei e, portanto, o Judiciário deve protegê-la e dizer o que está ou não de acordo com o texto constitucional. E a Constituição trata da Suprema Corte, dizendo que ela é a Corte definitiva e mais nada, estabelecendo a competência originária da Suprema Corte”.
O diretor da Escola Superior da AGU encerrou: “O processo de escolha de um juiz da Suprema Corte norte-americana é o mesmo do Brasil, mais uma influência do texto na Constituição brasileira: indicação presidencial e aprovação do Senado, com sabatina ou não, que é levada muito a sério nos Estados Unidos. A Suprema Corte é formada por nove juízes: um ‘chief justice’ e oito ‘associate justices’. O ‘chief justice’ funciona como um presidente da Corte, mas a palavra presidente nunca é usada. É um cargo sem mandato, ele é escolhido de forma separada e pode ficar a vida toda no cargo”.
Controle de Constitucionalidade no Brasil
Eleonora Mesquita Ceia, professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (IBMEC) e doutora em Direito pela Universidade de Saarbrücken, destacou: “A doutrina majoritária nos ensina que o controle de constitucionalidade é um instrumento de origem constitucionalista, ou seja, é um instrumento, por excelência, para limitar o poder do Estado, protegendo os direitos fundamentais e desconcentrando o poder. Quando avançamos para a era contemporânea do constitucionalismo, vemos um controle de constitucionalidade com o propósito de afirmar liberdades políticas conjugado com a afirmação de direitos sociais. É isso que aprendemos na faculdade, que esse controle é um instrumento para efetivação de direitos fundamentais e do regime democrático. Vemos isso muito bem moldado e forjado na nossa Constituição de 1988. Aqui no Brasil, adotamos um sistema hibrido de controle de constitucionalidade, que reúne uma forma difusa incidental, originária dos Estados Unidos, mas com a competência de controlar a constitucionalidade das leis dada a qualquer juiz e tribunal na resolução de caso concreto. Não apenas isso, conjugamos essa forma difusa incidental com uma forma concentrada principal. Isso acontece de uma forma tranquila no Brasil, porque passou a ser nossa cultura jurídica. Ao lado de todo juiz e tribunal resolvendo litígios de interesse, quando percebe uma questão constitucional, eles têm o poder e o dever de verificando se a norma aplicada fere a Constituição declarar essa norma inconstitucional. Essa é a modalidade difusa incidental”, prosseguiu a professora.
Eleonora Mesquita Ceia continuou: “O nosso sistema, forjado ao longo de décadas, por isso a importância de se estudar a história do controle de constitucionalidade no Brasil, chega na primeira Constituição democrática e começa a criar ações específicas de controle reservadas exclusivamente ao julgamento do Supremo Tribunal Federal. A ideia era que essas ações específicas fossem propostas diretamente ao STF, e não por meio de recursos como as ações incidentais, levando questões abstratas de constitucionalidade, questões que se perguntam se uma lei ou uma norma ferem a Constituição, mas apartadas de um caso concreto. Ou seja, lá em 1934 surge a representação interventiva, ainda hoje presente no texto de 1988, que resolvia conflitos constitucionais federativos, ensejando, inclusive, a possibilidade de decretação de intervenção federal”.
“Na década de 1960 chega a chamada representação de inconstitucionalidade, a famosa Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Assim foi evoluindo nosso sistema concentrado principal de controle de constitucionalidade, porque não é a resolução de um caso, mas questões que devem ser resolvidas pelo órgão guardião da Constituição na defesa de sua supremacia. Esse é o nosso controle híbrido de constitucionalidade. Ele é completamente transformado com a Constituição de 1988, porque o controle concentrado se amplia de uma forma muito significativa. Antes do texto, tínhamos a representação interventiva e a de inconstitucionalidade, mas com a nova Constituição são criadas outras ações do controle concentrado. Essa ampliação também é verificada quanto aos legitimados, pessoas, órgãos e agentes que podem propor essas ações diretamente ao STF. Antes, o único legitimado era o Procurador-Geral da República. Essa ampliação, tanto de ações do controle concentrado, quanto de legitimados ativos para propor essas ações, significou necessariamente um instrumento de afirmação de direitos fundamentais e do regime democrático?”, ressaltou a professora.
Protagonismo do Controle Concentrado: avanços e desafios
Eleonora Mesquita Ceia frisou: “Não podemos negar que o protagonismo do STF, consolidado com a expansão do controle concentrado de constitucionalidade, trouxe avanços muito significativos em afirmação de direitos fundamentais. Mas sempre temos que ter uma perspectiva crítica diante da realidade posta e o problema é o seguinte: podemos evocar a afirmação de direitos para a defesa do interesse público ou para a afirmação de direitos para a defesa de interesses corporativos. Quais são os direitos e interesses efetivamente protegidos por esse controle concentrado de constitucionalidade? São os interesses dos cidadãos em geral, sobretudo de pessoas vulneráveis, ou são interesses de corporações determinadas que defendem seus direitos, em razão do poder econômico que têm?”.
“Uma pesquisa da UnB de 2012 identificou quem são aqueles que mais propõem ações do controle concentrado, em ordem: governadores de Estado; Procurador-Geral da República; entidades corporativas, que são associações civis que reúnem pessoas jurídicas que exploram a mesma atividade econômica; e em quarto partidos políticos. E essas ações foram exitosas, mas a maioria dessas ações são de defesa de interesses específicos próprios. O único que sai um pouco da regra é o Procurador-Geral de República, que propunha ações do controle concentrado mais voltadas para afirmação de direitos difusos e individuais. Esse era o quadro que essa pesquisa trouxe”, destacou em sequência a professora.
Eleonora Mesquita Ceia salientou: “O que mudou nos anos seguintes? Os agentes que mais propunham as ações do controle concentrado permaneceram, mas mudou um pouco a ordem. O primeiro agora, com maior volume de ações é o PGR, seguido dos partidos políticos, entidades corporativas e, em quarto, os governadores de Estado. São dados do Anuário Justiça Brasil de 2023, editado pelo Conjur. O que mudou? Por conta da pandemia, os partidos políticos que detinham uma postura de propor essas ações para defender interesses político partidários passam a propor essas ações para defender interesses fundamentais de minorias e grupos vulneráveis. Essa é uma mudança significativa de postura, de começar a instrumentalizar as ações do controle concentrado para a afirmação de direitos fundamentais. Agora, as entidades corporativas patronais permaneceram acionando bastante o STF para defender interesses próprios corporativos e de uma forma muito mais ativa e exitosa que as entidades profissionais, da categoria dos trabalhadores. 85% das decisões foram favoráveis aos empregadores e desfavoráveis aos trabalhadores”.
“Resultado: o perfil dos legitimados, junto ao perfil das decisões do controle concentrado, e a jurisprudência defensiva do STF nos traz ao resultado parcial que o controle concentrado de constitucionalidade no Brasil antes de se prestar a afirmação de direitos fundamentais, se presta mais a defesa de interesses institucionais e corporativos específicos. Então, o que fazer? Precisamos ser propositivos, não adianta apenas identificar o problema. Minha proposta está na alteração da postura do STF com relação ao inciso 9, do Artigo 103. É urgente que o STF amplie sua interpretação do termo ‘entidade de classe de âmbito nacional’. Estamos vendo um certo progresso, mas é um progresso tímido. Vemos o Supremo aceitando ações do controle concentrado propostas por ONG’s, associações de direitos humanos, alargando a interpretação restritiva de entidade de classe com o reconhecimento de movimentos sociais, de ONG’s, como legitimados ativos, ainda que especiais, das ações do controle concentrado”, finalizou a professora.
Debate
O desembargador Cláudio Brandão de Oliveira, diretor administrativo do Conselho Consultivo da EMERJ e doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF), encerrou: “São temas muito importantes. A Suprema Corte norte-americana tem a possibilidade de falar não, mas a Constituição brasileira não deu ao STF, e ao Poder Judiciário de um modo geral, a possibilidade de falar não. Tomando como parâmetro o STF, as pessoas reclamam de algumas decisões, mas não há possibilidade do Supremo falar não e deixar que o Parlamento examine determinado tema. Os próprios parlamentares às vezes falam que não iram deliberar sobre certos temas para o STF resolver. Então, há uma certa acomodação do próprio Poder Legislativo que renuncia do protagonismo que naturalmente seria dele, de regulamentar e decidir, mesmo sobre temas sensíveis. E nesse aspecto, o Supremo, mesmo com as críticas que recebe, não diz não a sociedade brasileira. As decisões que mais marcaram a atuação do STF foram aquelas que trouxeram avanços e foram corajosas e deram, de certa forma, uma interpretação única a Constituição brasileira. A nossa Constituição já é única, muito extensa e repleta de princípios e conceitos jurídicos indeterminados. Quando se coloca algo indeterminado, tudo passa a ser parâmetro para controle de constitucionalidade. Se é possível provocar a Suprema Corte e ela não pode falar não, ela vai ter que enfrentar, não há outra alternativa. É preciso compreender o sistema judiciário brasileiro, que é bem diferente do modelo norte-americano. Lá é uma Constituição pequena, que dura há séculos, com questões de certa forma já postas”.
Ao final da reunião, houve o sorteio de três exemplares do livro “Posse e Usucapião: direito material e direito processual”, de autoria do desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo e do membro do Fórum Permanente de Processo Civil da EMERJ José Roberto Mello Porto, defensor público da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPERJ).
Assista
Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=89anmFBN3uI
Fotos: Jenifer Santos
08 de abril de 2024
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)