A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) realizou nesta quinta-feira (20) a cerimônia de formatura da primeira turma do Curso de Português Instrumental Jurídico, em cooperação com o projeto Educafro. Na solenidade, que inaugurou simbolicamente a parceria entre a Escola e a ONG, também foi formalizada assinatura de Termo de Cooperação Técnica entre a EMERJ e a Educafro. O ato aconteceu no Auditório Desembargador Joaquim Antônio de Vizeu Penalva Santos.
Mesa da cerimônia de formatura (em ordem: professor Ulisses Gomes; desembargadora Ana Maria Pereira; desembargador Marco Aurélio Bezerra, diretor-geral; Frei David; e o advogado Irapuã Santana.
Diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo
“É um dia de muita alegria para nossa Escola, possibilitando a realização desse primeiro curso. Fiz questão de colocar ‘primeiro curso’ para deixar claro o compromisso da nossa Escola. Saúdo a todos os alunos, porque toda formatura é uma vitória.
Estamos aqui hoje para celebrar o primeiro momento da concretização de algo que se iniciou como uma conversa informal e se tornou um importante projeto da EMERJ. Desde aquele primeiro momento, minha vida profissional, minha experiência no magistério e na direção dessa Escola me fazem refletir sobre como conhecer nossa língua é um dos mais importantes mecanismos de exercício democrático para o efetivo exercício da cidadania e da advocacia, porque o curso é instrumental jurídico.
Quando, juntamente à Educafro, ao lado do Frei David, pensamos o curso de Português Instrumental Jurídico, cuidamos para não repetir o modo estigmatizante de ver o uso da linguagem, que procura apontar e corrigir erros. Entendemos que nós, brasileiros, falamos o português brasileiro. Conseguimos nos comunicar, entendemos e somos entendidos. Todos nós usamos a nossa linguagem de diferentes modos, em diferentes lugares. O modo como escrevo nos aplicativos de mensagens, não é o mesmo modo que redijo um voto, uma decisão ou um acórdão. A forma como converso na intimidade, com meus familiares, não é a mesma que me reporto aos meus colegas desembargadores em uma sessão de julgamento e aos advogados. Por isso, entendemos que educação linguística é um importante meio de inclusão para que todos nós possamos conhecer, entender, saber ler e escrever nos diferentes gêneros, para as diferentes situações que vivemos diariamente.
Como defende o professor Marcos Bagno, em seu livro ‘Preconceito Linguístico’, aspas: ‘Ter acesso a todas essas variedades de uso da língua é direito do cidadão, de modo que ele possa se inserir plenamente na vida urbana contemporânea, ter acesso aos bens culturais mais valorizados e dispor dos mesmos recursos de expressão verbal, oral e escrita dos membros das elites socioculturais e socioeconômicas.’
Sabemos que, no Brasil, o índice das pessoas que possuem dificuldades para interpretar e aplicar textos é de mais de 29%. Sabemos que, atualmente, a maioria da população se declara preta ou parda. Precisamente, pelos dados estatísticos oficiais do governo brasileiro, 55,5% dos brasileiros são afrodescendentes. No entanto, mesmo assim reconhecemos que pretos e pardos são os que têm menos acesso a educação, cultura e mercado de trabalho digno. Números do IBGE, divulgados há dois meses, apontam que a parcela da população preta que acessa o ensino superior é quase metade da branca. Apenas 16,4% dos pretos entre 18 e 24 anos estão cursando uma graduação e apenas 2,4% estão formados.
Por isso, para tentar reverter esse quadro, pelo menos contribuir de alguma forma, entendemos imprescindíveis iniciativas como as da Educafro, uma organização sem fins lucrativos que trabalha no empoderamento e mobilidade social da população afro-brasileira, em especial, e pobre, em geral, por intermédio de ações afirmativas inclusivas na educação superior, dentro do processo de ingresso e permanência nas universidades e especialização depois da graduação, como também na inserção, que é fundamental, no mercado de trabalho.
Nesse sentido, e objetivando a promoção de uma diversidade étnica no mercado de trabalho em defesa dos direitos humanos e combate ao racismo e todas as formas de discriminação, a parceria aqui firmada é essencial, celebrando, porque hoje é dia de festa, mas sem abandonar a reflexão crítica sobre a triste realidade do nosso país.
Que fique bem claro que não se trata de uma ação assistencialista, mas sim um movimento estratégico de abrir as portas desta Escola de Governo para a garantia de um direito e promoção da cidadania, totalmente alinhado à missão institucional que consta no nosso regimento, aspas: ‘Especializar profissionais que atuam na área do Direito, qualificando-os como agentes transformadores da sociedade’.
Então, a Escola foi criada há 35 anos com essa função e aqui nós estamos realizando isso nesse momento. Reitero e torno a destacar que essa ação foi organizada para ser um curso assentado, ao mesmo modelo do processo didático pedagógico estudado pela ciência das Letras, incluindo no seu programa o estudo de autores negros, passando pelos textos dos próprios alunos cursistas.
Por que não daria certo? Já deu certo. Deu muito certo. A evidência maior está aqui nessa sala. Para finalizar, trago aqui uma palavra da escritora feminista nigeriana Chimamanda Adichie, aspas: ‘Poder é a habilidade de não só contar a história de outra pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa’. Esse fato torna essa formatura um passo fundamental de um grupo de cerca de 30 mulheres e homens que reconhecem a importância de ter acesso a meios de contar a sua própria história e assim reverter o histórico de séculos, em que a maioria de pretos não pôde ter narrada essa história por eles mesmos”.
Frei David Raimundo dos Santos, diretor-presidente da Educafro
“Primeiro, dizer para todos vocês que são autoridades jurídicas e aos estudantes, que serão futuras autoridades jurídicas, que queremos vocês abraçando algo novo.
As nossas vitórias da comunidade negra não estão circulando. Nossas dores e sofrimento têm circulado demais, mas nossas vitórias não. Faço um apelo a vocês para que sejam propagadores das nossas vitórias.
Qual foi a grande última vitória do povo negro no Brasil com referência a cotas? Nós conquistamos cotas para negros no concurso de tabelião. 20%. E qual a minha dor? A maioria do povo negro no mundo jurídico não sabe dessa novidade. Essas vitórias têm que ser divulgadas.
Parabenizo a vocês, meus irmãos e irmãs que terminam hoje o curso de Português Instrumental Jurídico, por mais essa vitória".
Advogado Irapuã Santana, consultor jurídico voluntário da Educafro, presidente da Comissão de Igualdade Racial da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB/SP)
"Passando pelos corredores para chegar até esse auditório, eu vi uma mudança significativa nas salas da EMERJ. Vemos hoje muitas pessoas negras. Na minha época, andando pelo TJRJ, normalmente eu era confundido com um pastor de igreja, com um segurança, porque não tinha negros. E estamos falando de cerca de 16 anos atrás. Então, é muito importante participar aqui hoje, porque vemos que está andando. Estamos hoje com o auditório repleto de pessoas negras que estão estudando, correndo atrás. É muito gratificante poder ver isso.
Como eu cheguei até aqui? Fiz o vestibular pelas cotas em 2003. Em 2012, entrei no mestrado e, em 2014, fui assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Em 2015, o CNJ instituiu as cotas no âmbito dos Tribunais. Foi quando o Frei David foi bater de porta em porta no gabinete dos ministros do Supremo dizendo: ‘O CNJ fez muito bem, mas vamos mais além. Vamos o Supremo dar o exemplo e colocar um assessor negro’. Quando ele bateu na porta do ministro Fux, o ministro disse para ele que o assessor dele era negro. A partir dali, conheci o Frei David, e fomos nos aproximando, trabalhando e conseguimos caminhar bastante.
Fiquei em Brasília até 2018 e quando eu saí, falei com o Frei: ‘Já temos muita coisa, temos um arcabouço legislativo forte e grande em favor da população negra, o que não temos são as instituições aplicando’. Foi a partir daí que começamos, primeiro no TSE, trazendo a distribuição proporcional para as verbas eleitorais para as candidaturas negras. Fomos no MEC pelas cotas no mestrado e doutorado.
Mas acho que o principal de tudo é dizer que, hoje, vocês que estão se formando ainda têm um caminho pela frente, que é fazer com que esse material que vocês têm, esse conhecimento adquirido, seja aplicado para vocês e para os outros, posteriormente. Investir em vocês mesmos é investir no povo negro. Mauro Cappelletti, que estudou praticamente todas as justiças do mundo para saber como era o acesso à justiça, percebeu que uma das barreiras era justamente a palavra. Se você não entende o que está sendo discutido, você não consegue prosseguir atrás do seu direito. Com esse curso, vocês hoje conseguem compreender melhor e se expressar melhor.
A ferramenta que temos para fazer concursos ou para advogar é a palavra escrita e a palavra falada. Então, daqui pra frente, continuem trabalhando isso. Todo dia lendo, todo dia estudando, porque, no final das contas, Direito Constitucional, Direito Administrativo, Processo Civil, tudo é português. Estamos passando por um processo de simplificação da linguagem, porque o Direito é para a sociedade, e não adianta falar se as pessoas não entendem. E isso é que é demonstrar o verdadeiro conhecimento. Não é utilizar palavras rebuscadas. Normalmente, quem usa muitas palavras rebuscadas não entende direito o que está falando e quer enrolar a pessoa. Você pegar uma coisa complexa e transformar em informação simples, para todos entenderem, aí sim você demonstra que reconhece verdadeiramente o assunto.
Parabéns a todos que estão se formando. É um grande passo”.
Oradora da turma Ana Paula Reis da Conceição Vasconcelos
Discurso da oradora da turma Ana Paula Reis.
“Hoje é um dia de gratidão. Nosso coração está transbordando de muita alegria pela oportunidade de estarmos nessa casa. Muito obrigado ao diretor-geral, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, que nos proporcionou a oportunidade de participarmos deste curso, que certamente será apenas o início de uma boa relação. Queremos agradecer também ao senhor pelo exemplo de magistrado que tem sido. Comprometido com a justiça social, sua dedicação às causas da educação e da inclusão social é motivo de admiração. A iniciativa de oferecer esse curso voltado para a comunidade preta, pobre e periférica demonstra o compromisso real com a promoção da igualdade racial e da justiça social desse país e do nosso Estado do Rio de Janeiro.
Por meio desse curso, tivemos a oportunidade de aprimorar as nossas habilidades na língua portuguesa, ferramenta essencial para nosso desenvolvimento pessoal e profissional. Hoje, celebramos um marco histórico, a formatura da primeira turma do curso de Português Instrumental Jurídico da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Esse dia representa a culminação de um sonho, de uma luta por igualdade e representatividade dentro do sistema jurídico do Brasil.
Somos a prova viva de que a força da nossa comunidade unida, em busca de conhecimento e justiça, pode derrubar barreiras e abrir portas que antes pareciam inacessíveis a todos nós. Somos a prova viva de que a força está dentro de nossos corações.
Neste curso, tivemos a oportunidade de aprofundar nossos conhecimentos em língua portuguesa, uma ferramenta fundamental para a atuação profissional dos operadores do Direito que somos. Mas acima de tudo, aprendemos a usar a linguagem como instrumento de transformação social. Ao denominarmos e dominarmos essa linguagem jurídica, tornamo-nos os agentes de mudança capazes de defender os direitos da população negra e de construir uma justiça mais inclusiva e democrática. O certificado que recebemos hoje é um símbolo da nossa capacidade de superar obstáculos e alcançar os nossos objetivos. É a prova de que, com determinação e perseverança, podemos conquistar os nossos sonhos e construir um futuro promissor para todos nós.
Professor Ulisses, em nome de toda turma, quero expressar ao mestre com todo carinho que temos em nossa alma: muito obrigado, professor, por sua dedicação, amor e empenho em transformar nossos dias. Gratidão por compartilhar seu conhecimento, experiências e sua paixão pelo português. Você foi nosso guia, nos ensinou a usar a língua portuguesa como ferramenta de transformação social, buscando uma sociedade mais justa e menos desigual.
O caminho que se abre diante de todos nós é árduo, mas estamos preparados para enfrentá-lo. Somos juristas negros e negras e temos a missão de construir uma sociedade com mais acesso a direitos e mais representatividade nos órgãos de poder. Lembrem-se sempre da nossa força e da nossa capacidade de superar obstáculos, do compromisso com a justiça social e a defesa dos direitos da população preta, periférica e de outras minorias, da importância da voz e da luta para um futuro melhor e do zelo ao nosso juramento pela moral e ética profissional.
Combata o bom combate, compete a sua carreira, guarde a fé e não negocie sua coragem e sua coroa com ninguém. ‘Eu tenho um sonho’, dizia Martin Luther King. Nós dizemos ‘Liberdade para estudarmos’. Ecoando as palavras de Martin Luther King, eu acredito. Acredito que apenas a luz da justiça é capaz de dissipar as sombras da desigualdade e, diante dessa possível realidade, vislumbro um Judiciário onde a diversidade das nossas cores ilumine a magistratura brasileira.
Agradeço à EMERJ e à Educafro por serem os primeiros raios de esperança desse amanhecer, por iniciarem a árdua, mas gratificante, jornada rumo ao ideal da liberdade do saber.
Para que possamos experimentar uma vida boa e agradável, não podemos nos conformar com esse sistema racista espalhado pelo Brasil e pelo mundo, mas transformá-lo pela renovação do nosso entendimento, com todo saber e conhecimento.
Liberdade para estudarmos. Obrigada.”
Professor Ulisses da Silva Gomes
Desembargador Luís Cláudio Dell'Orto, vice-presidente do Conselho Consultivo, entrega homenagem ao professor Ulisses Gomes.
“É difícil falar depois de todos. Quero agradecer ao desembargador Marco Aurélio por essa iniciativa. O que falei para todos, sempre, é que eu aprendo a cada aula. É sempre uma troca. Só tenho a agradecer. Muito obrigado”.
Homenageados
O professor Ulisses Gomes e a funcionária da EMERJ Marcelli Ferreira dos Santos, assistente da turma, foram homenageados na cerimônia.
Demais participantes
Também estiveram presentes no evento: o desembargador Luís Cláudio Braga Dell’Orto, vice-presidente do Conselho Consultivo e magistrado supervisor de Tecnologia da Informação da EMERJ; a desembargadora Patrícia Ribeiro Serra Vieira, membra do Conselho Consultivo e magistrada supervisora de Pedagogia e Ensino da EMERJ; desembargadora Ana Maria Pereira de Oliveira, membra do Conselho Consultivo da EMERJ e magistrada supervisora de Biblioteca e Cultura, responsável pela gestão da Biblioteca TJERJ/EMERJ Desembargador José Carlos Barbosa Moreira; o desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) William Douglas; o juiz Eric Scapim Cunha Brandão; o procurador do Estado do Rio de Janeiro Anderson Schreiber; a secretária–geral, Gabriela da Silva Rafael Carneiro; e o chefe de gabinete, Francisco Budal.
Curso de Português Instrumental Jurídico
Na primeira turma, 27 alunos realizaram a formação. Ao todo foram três meses de ensino, com aulas ministradas pelo professor Ulisses da Silva Gomes.
O curso teve como objetivo promover o ensino da norma padrão da língua portuguesa, garantindo conhecimento profundo para que se possa ter um bom desempenho jurídico acadêmico e profissional, por meio do fortalecimento de habilidades na produção oral e escrita, com foco na compreensão, interpretação e produção de textos jurídicos.
Para além disso, a parceria também propiciou aos participantes do curso acesso à Biblioteca TJRJ/EMERJ Desembargador José Carlos Barbosa Moreira, para fins de estudo, com os mesmos incentivos fornecidos aos alunos da EMERJ.
Educafro
A ONG Educafro foi idealizada pelo Frei David. O projeto existe há mais de 30 anos, com a missão de auxiliar jovens pobres, especialmente negros, a ingressarem em universidades de todo o Brasil. Cerca de 100 mil pessoas conquistaram suas vagas por meio do projeto.
Fotos: Maicon Souza
20 de junho de 2024
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)