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“Gênero e Injustiças Epistêmicas” é tema de palestras na EMERJ

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O Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) promoveu nesta sexta-feira (05) o ciclo de palestras sobre “Gênero e Injustiças Epistêmicas”.

O encontro, organizado em conjunto com o Núcleo de Pesquisa em Gênero, Raça e Etnia (NUPEGRE) do Observatório Bryant Garth da EMERJ e com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), aconteceu presencialmente no Auditório Desembargador Paulo Roberto Leite Ventura. Houve transmissão via plataforma Zoom, com tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Abertura

O diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, destacou em sua fala de abertura do evento: “É uma alegria enorme participar novamente de um evento do Fórum Permanente de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero, um Fórum tão relevante, e um evento com um tema extremamente importante que é o da injustiça epistêmica. A injustiça epistêmica não toca apenas a questão de gênero, mas também a questão de raça, etnia, do desrespeito a diversidade sexual. Aqui na EMERJ estamos tentando combater isso tudo”.

“Gostaria de convidar a todos a uma reflexão na discussão também sobre a responsabilidade civil. Temos visto na questão do gênero, a Lei Maria da Penha, a violência doméstica sendo combatida com todas as forças possíveis do Judiciário, no plano do Executivo e do Legislativo, os poderes da república unidos para combater a violência doméstica. Mas, talvez, nesse combate seja um contributo importante falarmos da responsabilidade civil. A violência doméstica não guarda relação com nível socioeconômico e é um câncer em nossa sociedade que atinge todas as classes sociais. Acho importante também pensarmos na responsabilização patrimonial desses homens que agridem as mulheres, em qualquer plano, com repercussões patrimoniais, no campo da responsabilidade civil, do dano material, do dano moral, dos alimentos compensatórios. Por exemplo, uma mulher que sofre uma violência patrimonial ela tem dificuldade. É importante que tragamos para a discussão a questão patrimonial, o bolso. Como dizia o professor Capanema, esse é o nervo que dói mais na pessoa. Eu gostaria de ver um dia essa questão com reflexos patrimoniais contra os homens que agridem as mulheres”, finalizou o diretor-geral da EMERJ.

O excelentíssimo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Rogério Schietti Cruz, doutor em Direito Processual pela Universidade de São Paulo (USP), expôs: “É sempre uma satisfação e uma alegria poder contribuir em qualquer tipo de debate promovido pela EMERJ. A injustiça epistêmica é um tema central, que não diz respeito tão somente a processos e questões de gênero, mas que nesse âmbito se mostra muito marcante. Na verdade, o conceito de injustiça epistêmica, tanto na sua forma testemunhal quanto hermenêutica, foi desenvolvido por Miranda Fricker há cerca de 15 anos, a partir da observação de que dentre as injustiças que estão presentes em diversos setores da convivência humana, existe um tipo de injustiça que se realiza a partir das interações comunicativas, nas transações epistêmicas, qualificando certas pessoas como pertencentes a um grupo que não possui, por questões culturais, uma capacidade, segundo essa modalidade de justiça, de transmitir conhecimento com credibilidade. Fala-se de uma injustiça epistêmica quando temos, por exemplo em questões raciais, ausência de credibilidade em depoimentos provenientes de uma pessoa preta ou parda”.

“No âmbito da justiça envolvendo a violência doméstica também observamos uma cultural e estrutural tendência de muitas vezes descredibilizarmos os depoimentos de mulheres vítimas de violência exatamente por conta de toda construção social e os papéis de gênero que são atribuídos pela sociedade nas nossas tradições. Isso, portanto, acaba não apenas revitimizando as mulheres vítimas de violência, mas enfraquece o sistema de justiça criminal, na medida em que não permite a formação de uma prova robusta e convincente, porque a própria vítima de violência se sente desestimulada a ter de enfrentar as agruras de um processo na qualidade de vítima, porque não se sente acolhida. Talvez esse seja o grande déficit da justiça criminal como um todo, e isso evidentemente não é uma crítica ao Judiciário ou aos juízes, mas ao sistema, que é integrado por profissionais de todas as corporações, mas ainda temos que muito a crescer na oferta deste acolhimento tão importante para quem se vê em uma situação de vulnerabilidade momentânea ou permanente e necessita desse acesso ao Poder Judiciário, o que nem sempre ocorre”, prosseguiu o ministro do STJ.

O ministro Rogério Schietti Cruz continuou: “Foi feita uma pesquisa recentemente pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em conjunto com o Data Folha, que se chama ‘Visível e Invisível’, que comprovou em números em 2023 essa afirmação que fiz. A pesquisa perguntou a mulheres vítimas de violências graves que atitude tomaram em relação a agressão mais grave sofrida nos últimos 12 meses. 45% responderam que não fizeram nada. Além de muito problemático, isso é muito triste. São mulheres que permanentemente sofrem abusos de toda ordem, violência patrimonial, social, psicológica, física e ainda assim não se sentem encorajadas a tomar uma atitude. Praticamente metade das mulheres vítimas de violência não fizeram nada, não tomaram uma atitude, não procuraram uma autoridade, certamente por falta de credibilidade. Portanto, essa descredibilização do seu depoimento, porque elas passam por isso muitas vezes, as desincentiva a reunirem forças para seguir adiante com uma denúncia, uma representação, participar de audiências e trazerem seu relato. Então, essa contribuição científica de autores como Miranda Fricker é fundamental, porque supre uma lacuna conceitual em relação a determinados temas que até pouco tempo atrás desconhecíamos. O exemplo mais candente é o crime de assédio moral ou sexual”.

“Nós precisamos desenvolver conceitos, como o femincídio e tantos outros, para que se tornem naturais e permitam uma maior responsabilização daqueles que cometem algum tipo de violência contra mulheres. Percebemos um crescente interesse doutrinário e do Judiciário, das agências estatais envolvidas no sistema de justiça, com essa temática e um aperfeiçoamento natural desses conceitos e desses valores que conferem uma proteção maior as mulheres. Acho importante que cada um de nós, nas esferas de poder que cada um ocupa, possa contribuir. É um dever cívico, um dever humano”, concluiu o ministro do STJ.

Janaina Matida, professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e da Universidade Alberto Hurtado e doutora em Direito pela Universidade de Girona, pontuou: “Eu fico muito sensibilizada e feliz de participar de eventos como esse e de trabalhar com o ministro Schietti, porque tudo isso representa uma magistratura que é compromissada com o aperfeiçoamento e com a melhora, com a missão humanitária que a instituição precisa carregar. É muito importante que tenhamos encontros para tratar de conceitos e ferramentas que são absolutamente compromissadas com essa melhoria e capacitação. Quando pensamos juntos, pensamos melhor. Se são desafios que a justiça como um todo precisa levar mais a sério, é importante que pensemos juntos sobre esses desafios. O problema da injustiça epistêmica é algo que atravessa todos os contextos da vida em sociedade, em sociedades que são marcadamente desiguais, como é o caso da brasileira, infelizmente. Sendo um problema que atravessa todos os contextos, a justiça, a jurisdição, precisa tentar dar conta disso e dar sua contribuição para que tenhamos uma sociedade menos desigual”.

“Dentro do Poder Judiciário as barreiras são muitas. Estamos lutando há muito tempo, porém o processo é lento. Estamos, obviamente, evoluindo, mas ainda falta muito. Por isso todas e todos devem participar dessa luta do Movimento Paridade no Judiciário. Desde sempre a mulher sofreu muita discriminação e esteve em um local que é pequeno para ela. A misoginia sempre foi um preconceito bárbaro, dos mais arraigados e sólidos, e é assim até hoje. Se não lutamos hoje, não mudamos o amanhã. E o Poder Judiciário é um grande transformador e tem uma grande responsabilidade nessa transformação. Nós que estamos no Poder Judiciário temos a responsabilidade de transformar esse país, tornando a sociedade mais justa, humana, igualitária e que todas as pessoas tenham seus direitos respeitados e garantidos por nós, segundo um julgamento conforme a perspectiva de gênero, que já vem sendo aplicado e que precisa ser ainda mais disseminado. Esse evento é importantíssimo para que tenhamos um letramento, para que nós juízes e juízas possamos ter condições de devolver a população e a sociedade um direito que lhe é roubado todos os dias”, reforçou a desembargadora federal do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) Therezinha Cazerta, presidente da Comissão de Gestão Socioambiental do TRF-3, conselheira do Conselho Superior da ENFAM e membra do Comitê de Participação Feminina no Judiciário do Conselho Nacional de Justiça (COFEM-CNJ).

A presidente do Fórum, desembargadora Adriana Ramos de Mello, coordenadora do NUPEGRE, afirmou: “É um tema que sabemos que, de alguma forma, algumas pessoas são contra, então é importante sempre ressaltarmos. Esse evento vai ser um divisor de água para nós, porque esse conceito da injustiça epistêmica, embora exista há 15 anos, precisa ser trabalhado. Queremos muito que esse conceito de violência epistêmica ingresse no Poder Judiciário e realmente seja incorporado na jurisprudência, nas sentenças, nas decisões, nas audiências e nas atuações, porque sabemos que esse conceito ainda não é muito conhecido. E é um conceito que não se atém apenas a questão de gênero, mas também a questão racial, a questão das pessoas LGBTQIAPN+, que são pessoas que sofrem preconceitos, as vezes explícitos, mas em grande parte implícitos”.

“Esse evento também faz parte do Movimento pela Paridade, do letramento do gênero e de raça que esse movimento está procurando fazer dentro da magistratura, para que outras mulheres tenham coragem de concorrer a cargos e não sofrer discriminação, porque a injustiça epistêmica tem essas duas vertentes, não apenas quem acessa a justiça e sofre preconceito identitário, por sua questão de gênero, raça, etnia, mas também quem atua no sistema de justiça sofre em grande parte com a injustiça epistêmica, sobretudo hermenêutica”, encerrou a desembargadora Adriana Ramos de Mello.

Mesa 01: Injustiças epistêmicas e a violência sexual contra meninas e mulheres

A coordenadora da mesa, desembargadora Cristina Tereza Gaulia, coordenadora da Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), declarou: “É chegado o momento de efetivamente mudarmos determinados comportamentos e só quando mudamos, nós que estamos em lugares de poder, determinados comportamentos é que podemos pretender que os outros mudem também”.

“O Direito é ‘manualesco’ e nós temos que nos libertar disso. Temos que deixar o manual conviver com a interlocução do Direito com as outras ciências humanas, como a Filosofia, Antropologia, Sociologia e Psicologia. Nós passamos aos casos concretos e eu acompanhei isso, achei que isso era a sabedoria e era com isso que iríamos mudar tudo. Mas não é, porque os casos concretos começaram a se repetir e se tornaram dogmáticos por conta da repetição. Chegamos em uma época em que tem que ser freiriana, se não nós nunca vamos mudar nada, inclusive as questões de violências epistêmicas contra mulheres, negros e a população LGBTQIAPN+”, finalizou a desembargadora Cristina Tereza Gaulia,

Breno Santos, professor da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), frisou: “Esse trabalho e eventos como esse são muito importantes e precisamos continuar, porque o sentido radical da filosofia está presente justamente nessas rupturas que nós propomos e nos comprometemos a dar conta delas”.

“Eu costumo trabalhar e analisar os conceitos a partir da metáfora da lente. Um conceito é uma lente para enxergamos melhor os nossos problemas e para conseguirmos visualizar melhor a nossa realidade. Se o conceito não servir para melhorarmos a nossa análise, esse conceito merece ser redefinido ou até mesmo esquecido. A lente da justiça epistêmica serve para visualizarmos melhor e com isso podermos pensar em melhores soluções para esses problemas estruturais. E olhando o que é estrutural, podemos coletivamente achar uma saída ou alternativas”, salientou a professora Janaina Matida.

A desembargadora Adriana Ramos de Mello elucidou: “As desigualdades de poder existentes entre homens e mulheres na sociedade é retratado dentro do Poder Judiciário. O machismo, o patriarcado, estão enraizados no Judiciário, mas também estão dentro do sistema policial, do MP, da defensoria pública, dos advogados e advogadas, desqualificando as mulheres. Como a Fricker fala, a injustiça epistêmica ocorre quando o preconceito faz com que um ouvinte dê um nível de credibilidade deflacionado a palavra de um falante. Ou seja, aquela pessoa que está falando, pelo preconceito de quem está ouvindo, as vezes não precisa nem falar. E como ela descredibilizada, geralmente as perguntas feitas as mulheres vítimas de violência, sobretudo sexual, são: que roupa estava vestindo? Por quê estava andando sozinha na rua? Pegou um transporte sozinha de madrugada? Por exemplo, são vários os casos de estupro onde houve absolvição porque a vítima foi descredibilizada simplesmente porque tomou bebida alcóolica. As vezes o juiz nem fala, mas só a expressão daquele magistrado ou daquela magistrada já é um preconceito implícito. A omissão também é uma forma de preconceito, quando você vê uma vítima sendo descredibilizada, desqualificada em uma audiência, por qualquer motivo, e ela sequer pode falar. Então, no conceito da Miranda Fricker esse preconceito faz com que nós ouvintes estejamos praticando uma injustiça epistêmica, na modalidade testemunhal. Temos que transladar o conceito de injustiça epistêmica para o Direito e constar nas decisões, sentenças e pareceres, porque assim estaremos pegando a importante parte teórica e trazendo para o Direito, para a práxis jurídica”.

“Falar sobre a injustiça epistêmica em um ambiente acadêmico, com um auditório lotado, mostra que algum movimento está acontecendo e que o Poder Judiciário está mudando e estamos fazendo parte dessa mudança. Quando falamos sobre a injustiça epistêmica, não podemos deixar de falar o quanto isso dialoga com o racismo estrutural. Quando vejo essa dualidade, tanto a injustiça que pode se dar de forma testemunhal ou hermenêutica, e quando falo sobre o viés hermenêutico vislumbro muito o diálogo com o racismo estrutural. O racismo estrutural vem por fatores históricos e políticos. Não podemos ignorar que as questões do racismo estrutural e do machismo estrutural estão ligadas a violência sexual. Nós temos dados sobre isso. No Rio de Janeiro, cerca de 57% das vítimas de estupro são mulheres negras, de 2.800 casos no ano de 2019, cerca de 1.600 mulheres negras foram as vítimas das violências sexuais. Em 2021, de 3.358 casos, nós temos cerca de 1.914 mulheres negras vítimas de crimes de violência sexual. Isso passa por conta da injustiça epistêmica hermenêutica. Mas essa mudança de comportamento se dará apenas por meio do estudo. Precisamos nos enxergar como pessoas em situação de privilégio ou não, em situação de termos preconceitos estereótipos ou não. Só a partir desse reconhecimento é que poderemos trazer as mudanças que vemos ainda hoje”, disse a juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJCE) Bruna dos Santos Costa Rodrigues.

“Acho que precisamos olhar para o simbolismo das palavras e para o local que elas ocupam dentro da construção dos direitos humanos. Quando se fala dos espaços que nós mulheres precisamos ocupar, precisamos ocupa-los a partir de determinados reconhecimentos e o simbólico importa e faz a diferença. O acesso a justiça para mulheres que sofrem violência é bastante questionável, considerando que quase 50% das mulheres que passam por violência, não procuram o sistema de justiça para defender os seus direitos, notificar e comunicar suas violências. Se isso acontece, acontece por algum motivo e precisamos refletir sobre o que acontece para que as pessoas não tenham acesso a esse espaço. A frase ‘nada sobre nós, sem nós’ precisa estar o tempo todo a frente, principalmente quando falamos em injustiças epistêmicas, se queremos a formulação da política pública e da política judiciária. Não dá para fazermos essas formulações se não ouvirmos as instituições e as mulheres. Precisamos do coletivo para proporcionar o nosso crescimento”, concluiu a juíza do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) Teresa Cristina Cabral Santana, presidente do XVI FONAVID.

Mesa 02: Injustiça testemunhal e gênero na justiça criminal

Miriam Jerade, professora da Universidade Adolfo Ibáñez, ressaltou: “A possibilidade de que a justiça, entendida como instituição, se transforme ao reconhecer as injustiças epistêmicas relacionadas ao abuso sexual como injustiças estruturais é fundamental. Um exemplo disso são os testemunhos das sobreviventes no julgamento de Larry Nassar. Esses depoimentos, além de servirem como declarações de impacto das vítimas, uma figura legal destinada a apoiar a decisão sobre a sentença, também atendem a algumas demandas centrais do movimento #MeToo. Eles aceitam o valor de narrar a experiência de abuso sexual, evidenciam o dano causado pelos preconceitos que afetam a credibilidade das vítimas e tornam visíveis as estruturas de poder que silenciam os testemunhos”.

“José Medina, em 2011, argumentou através de um artigo que Miranda Fricker deixou de levar em conta outros indivíduos que também estão inseridos no contexto conversacional e analisou o fenômeno da injustiça epistêmica de uma forma muito limitada, no seguinte sentido: não é só o falante em si, que sofre injustiça epistêmica. Outros indivíduos envolvidos no contexto conversacional podem sofre injustiça epistêmica por reflexo de um falante que recebe excesso de crédito”, palestrou o advogado criminalista Michael Guedes, mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

A defensora pública federal Natália von Rondow enfatizou: “Eu acredito que a injustiça epistêmica é um convite para olharmos para as raízes sociais e pegar situações e procurar entender o que estamos fazendo de errado e o que está acontecendo, porque uma mulher consegue relatar que prefere ser presa do que continuar sendo violentada sexualmente e esse relato é omitido pela defesa, pela acusação e pelo judiciário. Esse é o problema que trago para pensarmos em conjunto e que a injustiça epistêmica consegue descortinar”.

“Nosso Estado de Direito é a expressão de uma ordem global que é racista, cis-hetero-patriarcal e colonial. Ele é a expressão do problema. É a causa do racismo, do sexismo, do classismo e de várias outras formas de produção de hierarquias sociais. Há várias formas de pensar sobre o Estado de Direito, mas, de forma geral, quando estudamos Direito dentro de um currículo acadêmico e pensamos nos problemas sociais, nós pensamos em ausência do Estado de Direito, que ele não está funcionando bem, que precisamos consertá-lo e ele funcionará. Só que as leituras que venho fazendo nos últimos 20 anos provocaram em mim um grande pessimismo que surge da constatação que não é um problema, não é a ausência ou ineficiência do Estado de Direito, mas é justamente o seu funcionamento no seu esplendor, ele existe para criar isso. Nesse sentido, todos nós, enquanto academia de Direito, somos parte do problema que cria racismo, sexismo, todas as desgraças que estamos falando agora. É horrível e difícil constatar isso. Mas qual a solução? Não podemos sair de cena. Essa máquina é poderosa demais na produção dessas violências ‘deshumanizadoras’ para abrirmos mão de lutar por um funcionamento um pouco melhor. Em que condições o Estado de Direito pode ser parte da solução já que ele é, constitutivamente, parte do problema?”, ponderou Marcia Nina Bernardes, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

A juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá (TJAP) Elayne Cantuária, professora da ENFAM, evidenciou: “Eu gostaria de expressar a minha felicidade por cruzar o Brasil e vir do Amapá e estar hoje aqui partilhando com vocês um assunto emblemático e novo, mas que toca muito cada uma de nós mulheres e homens em defesa de uma sociedade mais igualitária. Que nós possamos melhorar a nossas lentes de olhar os problemas, as questões sociais e principalmente as vivências das pessoas. Então, esse é um exercício de humanização para que as pessoas possam ser iguais e em uma sociedade mais igualitária de verdade”.

“Quando a juíza Rosemarie Aquilina abriu espaço de um tribunal americano para ouvir mais de 156 pessoas sobreviventes dos estupros praticados por Larry Nassar, médico da equipe olímpica de ginástica dos Estados Unidos, ela nos disse que ‘fica exposta a cumplicidade institucional que protegeu essa pessoa por mais de 20 anos. Nessa medida, as injustiças testemunhais, por serem estruturais, exigem remédios institucionais. Gostaria de finalizar com uma frase da Miranda Fricker, que diz: ‘só a ação coletiva e instituições mais fortes podem oferecer alguma resistência à discriminação sistemática’. Que cada um de nós, no pequeno espaço que ocupa, possa contribuir para que a justiça faça menos injustiça epistêmica”, encerrou a juíza do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) Lívia Borba, mestra pela ENFAM.

A desembargadora Adriana Ramos de Mello foi a responsável pela coordenação da mesa.

Mesa 03: Injustiças hermenêuticas e gênero

O coordenador da mesa, desembargador Caetano Ernesto da Fonseca Costa, 1º vice-presidente do TJRJ e presidente do Fórum Permanente de Direitos Humanos da EMERJ, dissertou: “O que me preocupa e o motivo especial da minha pesquisa de doutoramento, dentro do recorte da atuação do Poder Judiciário, do juiz, é a reprodução inconsciente desse hábito de poder dentro da perspectiva da injustiça epistêmica. O quanto nós reproduzimos de forma inconsciente esses conceitos que levam a invisibilidade ou a uma visibilidade prejudicada em relação a determinados setores dos jurisdicionados que se apresentam nos conflitos que julgamos? Essa reprodução que me preocupa, dentro da injustiça epistêmica o outro lado da moeda, quer dizer, aquilo que leva, dentro do recorte da atuação jurisdicional, a reprodução do inconsciente daquilo que levamos incorporados dos nossos inventários de vida”.

“O que eu gostaria de oferecer é uma abordagem um pouco mais teórica de como a injustiça hermenêutica atravessa o raciocínio judicial. Onde ela aparece? No momento em que é tomada a decisão judicial pelo julgador e também pelos jurados, que também podem ser perpetuadores”, manifestou Rachel Herdy, professora da Universidade Adolfo Ibáñez.

A professora Ana Míria Carinhanha, secretária executiva adjunta do Governo Federal, declarou: “Eu entendo que nós vivemos constantemente processos de disputa de paradigmas e de compreensões a respeito do saber, do poder, dos sujeitos e dos regimes de verdade. Nós nos acostumamos e normalizamos o modo de pensar o Direito, a jurisdicionalidade e a norma, a partir de uma perspectiva positivista. Eu gostaria de fazer uma primeira provocação no sentido de trazer uma perspectiva construtivista para pensarmos qualquer tipo de interpretação como uma espécie de relação”.

“Eu sou uma grande defensora da Lei Maria da Penha e luto muito para que não a descaracterizem, porque ela, por excelência, é um movimento de mulheres e não do Sistema de Justiça Criminal e muitas vezes ela é lida a luz dos pressupostos que nós já temos e com interpretações que não são virtuosas”, expôs Lívia Paiva, pesquisadora do NUPEGRE e professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ).

A vice-presidente do Fórum, juíza Katerine Jatahy Kitsos Nygaard, frisou: “Injustiças epistêmicas são recorrentes no Judiciário, todos os dias, todas as horas, elas permeiam nossas decisões e nossas visões, que ficam distorcidas. Quando juntamos a prática a teoria é essencial e importantíssimo para abrirmos nossos olhos. É importante também que todos os juízes e juízas tenham também essa visão”.

“Ter um Poder Judiciário menos heteronormativo é importante para toda a sociedade. Precisamos ter mulheres, mulheres negras, pessoas LGBTQIAPN+. Todos precisamos disso. Eu não sou pessimista, eu prefiro falar como Ariano Suassuna: ‘o pessimista é um chato, o otimista é um tolo, então sou uma realista esperançosa’. É uma mudança difícil, mas vamos conseguir, temos que conseguir”, pontuou a juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (TJMS) Jacqueline Machado.

A juíza do TJMS Ellen Priscile Xandu finalizou: “Quando se fala sobre o inconsciente, automaticamente me vem a mente o inconsciente, e faço um paralelo com a psicanálise. Não sou uma estudante da área, mas li a coluna da psicanalista Vera Icaonelli, no Uol, que começa assim: ‘Por onde o analista começa? Como posso escutar no outro o que ainda não consigo escutar em mim mesmo?’. Parece que nos remete a muita coisa que está oculta e não sabemos, mas que nós, aqueles que temos a ser a razão, temos que de alguma forma lidar com essa Caixa de Pandora que é o inconsciente. No campo institucional, as inovações trazidas pelas Resoluções nº. 525 e 540 do CNJ, que implementam políticas afirmativas de gênero e raça no Poder Judiciário, tem provocado desconforto nos ambientes de poder. A tendência de manutenção do status quo é uma reação esperada quando se tenta mudar os desenhos dos espaços de poder e decisão”.

Lançamento do Radar da Paridade

Ao final da reunião, houve o lançamento do “Radar da Paridade”.

A desembargadora Adriana Ramos de Mello afirmou: “Nosso movimento é nacional e temos acompanhado várias juízas sofrendo discriminação e preconceito, seja pela questão de gênero, seja pela questão racial. O Judiciário precisa ter representatividade. É difícil ir em uma audiência e ter apenas pessoas que não representam a população. Não é uma questão de ocupação do espaço de poder. É uma questão de igualdade. É o que diz a Constituição Federal, é o que dizem os tratados de direitos humanos. Não queremos ocupar o espaço de homem nenhum, queremos apenas ter nosso espaço assegurado, em condições de igualdade com os homens”.  

“Somos heroínas da resistência. Para ter uma sociedade inclusiva, participativa e com o olhar transversal é preciso deixarmos que as mulheres ocupem os espaços de poder, com resgates históricos e institucionais. A maioria da população é feminina. A maioria da população é negra. Como fazer leis para que essas pessoas obedeçam? Como dar sentenças e no final delas ter legitimidade para que as pessoas se reconheçam? O Movimento Paridade no Judiciário começou e foi construído de uma forma linda. Nós aplicamos as leis e trabalhamos com a justiça, mas nós não temos justiça na nossa própria casa. A porta de entrada das mulheres no Judiciário corresponde hoje a 38%, mas se escalonarmos e avançarmos na concepção do Judiciário, temos apenas uma única ministra, Carmen Lúcia, no STF. A mulher na magistratura é tratada com desigualdade. Conclamamos que o movimente chegue a todas as magistradas e que todas possam ser voluntárias dessa transformação social. Não queremos o movimento para ascender na carreira, queremos para mudar a sociedade e ter injustiças epistêmicas deixadas na gaveta”, reforçou a juíza do TJAP Elayne Cantuária.

Coordenação do evento

A coordenação do evento foi de responsabilidade da desembargadora Adriana Ramos de Mello e da professora Janaina Matida.

Assista

Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=C8GG9v_wU6s / https://www.youtube.com/watch?v=07OOAuwFbhI

 

Fotos: Jenifer Santos e Maicon Souza

05 de julho de 2024

Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)