A Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) recebeu, nesta sexta-feira (16), o excelentíssimo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Reynaldo Soares da Fonseca para a Aula Magna do segundo semestre de 2024, com o tema “O Princípio Constitucional da Fraternidade: seu Resgate no Sistema de Justiça”.
O evento aconteceu no Plenário Ministro Waldemar Zveiter, no Palácio da Justiça, com transmissão pelo canal oficial da EMERJ no YouTube e tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
Abertura
A abertura da Aula Magna foi realizada pelo diretor-geral da EMERJ, desembargador Marco Aurélio Bezerra de Mello, doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), que destacou: “O tema da aula de hoje é sobre algo de que o mundo anda muito carente, que é da fraternidade. Essa obra “O Princípio Constitucional da Fraternidade: seu Resgate no Sistema de Justiça” chegou a mim durante minha pesquisa de pós-doutorado e a leitura dela me fez muito bem. Porque, muitas vezes, como magistrados, advogados ou promotores, nos sentimos, na realidade, cansados de não modificar, de não transformar nossa sociedade como tínhamos vontade de fazer. Como temos vontade. Não acredito que os que estão aqui hoje e querem ser magistrados do Rio de Janeiro não pensem na oportunidade que terão de transformar a vida de uma pessoa, porque se não, não vale a pena. Não vale a pena trabalhar no sistema de justiça se você não tem o compromisso com a fraternidade, com a empatia, com sentir a dor do outro e, dentro das suas possibilidades, poder modificar. Esse trabalho do ministro Reynaldo Soares da Fonseca analisa no âmbito do Direito Público, do Direito Privado, do Direito Constitucional e do Direito Processual a possibilidade, efetivamente, do Poder Judiciário caminhar ao lado da fraternidade, da solidariedade constitucional que sabemos que é um compromisso da Carta de 1988”.
“Temos que acreditar nisso, temos que acreditar nos princípios da Revolução Francesa, da igualdade e da liberdade, que ainda caminhamos com alguma dificuldade e não raro somos surpreendidos como ainda sequer conseguimos essa isonomia. A liberdade também. E a fraternidade? É por isso que todos que estão aqui foram convidados a esse banquete intelectual e, porque não, espiritual. Vamos acreditar, que no âmbito das nossas funções, efetivamente temos que ter um compromisso diário para a construção de uma sociedade que seja mais fraterna. Esse compromisso é constitucional. Uma Constituição que não foi hipócrita, porque ela disse que devemos construir. E cabe a nós, 35 anos depois, continuarmos sonhando com um mundo mais fraterno e um país menos desigual”, finalizou o diretor-geral da EMERJ.
Aula Magna
“É com muita alegria que volto ao magnifico estado do Rio de Janeiro, tão acolhedor. Volto ao segundo Tribunal de Justiça mais antigo desse país. E nesse sentido, quero dizer da minha alegria de aqui estar. Quero, antes, cumprimentar o desembargador Marco Aurélio Bezerra de Melo, que tem feito um trabalho primoroso na EMERJ.
Gostaria de lembrar a vocês que minha história de vida mudou a partir da educação. A educação transforma. É nesse sentido, que neste momento da vida de todos nós, precisamos resgatar algo esquecido. Eu trago um tema que é resgatar da nossa Constituição um novo modelo de constitucionalismo. Não um constitucionalismo liberal, aquele constitucionalismo que fez sucesso no século XIX, quando buscávamos enquanto seres humanos sermos homens livres, abolíamos escravaturas, embora hoje ainda tenhamos muito escravos das mais variadas coisas materiais que nos impõem a efemeridade e não a permanência. Também não quero falar do constitucionalismo social do século XX, aquele que nasce com a Constituição alemã de Weimar ou com a Constituição mexicana, onde descobrimos que para sermos livres temos que ser iguais, embora diferentes. Homens, mulheres, católicos, protestantes, espíritas, negros, brancos. Para sermos iguais precisamos de um constitucionalismo que tenha tutela coletiva, mas isso foi incapaz de responder a sociedade e ao mundo, que somos homens iguais e livres. Não construímos uma sociedade livre e igual. E o século XXI exige de nós o resgate de um princípio esquecido: a fraternidade. Que pode ter sua conotação moral, religiosa, da sociologia, da construção dos movimentos sociais, mas é uma categoria política, é uma categoria jurídica. Nesse sentido, ninguém melhor que um neurobiólogo, que faleceu há pouco tempo, na pandemia, o chileno Humberto Maturana, autor do livro ‘A Democracia é uma obra de arte’. Ele dizia: ‘o viver democrático é uma obra de arte. Não tem que ver com a eficiência, não tem que ver com a perfeição. Tem que ver com o desejo de uma convivência fraterna’.
Eu poderia perguntar para vocês, já que estamos falando de escravidão atual, moderna e pós-moderna, de dois autores, que não são do Direito, mas que ajudam a refletirmos sobre o constitucionalismo fraternal e a lógica da proibição dos preconceitos, que são Byung-Chul Han, um teórico sul-coreano, e o polonês Zygmunt Bauman, que trazem as obras ‘A sociedade do cansaço’ e ‘A modernidade líquida’. Somos agora empresários de nós mesmos, não valemos pelo que somos, valemos pelo que produzimos, valemos pela mais-valia, valemos por um desempenho que nos obriga a sempre estar em competição e sempre querer mais. É aquilo que Bauman chama de efemeridade das relações. Vivemos em tempos líquidos, nada foi feito para durar. Individualismo, fluidez e efemeridade.
Nesse sentido, a ideia da fraternidade nos alega e nos coloca, primeiro, no percurso de que essa ideia passa na cultura. Somos homens iguais, livres, irmãos, pertencentes de uma mesma família humana. Nessa família temos a cultura que nos impõe caminhos, que as vezes não são iguais, mas que podem representar, respeitando cada cultura, o encontro da diversidade, das diferenças, na construção da unidade da família humana.
Essa fraternidade nos convida, queridos alunos, a respeitar algo que chamamos de alteridade, respeitar o outro. Algo que decorre não mais de uma divindade ou de uma caridade humana, mas de um paradigma relacional. Estamos em uma relação e devemos respeito mútuo na construção daquilo que a ciência chama de dialética da secularização. Muitos na sociedade, inclusive nós, temos resistência à fraternidade, achando que ela pertence a moral, a religião ou a outro ramo do saber. Mas isso foi a construção de um processo, que chamamos de dialética da secularização. Essa fraternidade nasce, portanto, como condição da categoria política. Essa fraternidade diz respeito aquilo que nós chamamos de deliberação democrática, ao que falamos como participação cívica, e na construção, do dizer de um grande poeta brasileiro, ex-presidente da Suprema Corte de Justiça nacional, Carlos Ayres de Britto, de democracia fraternal, em sua obra ‘Teoria da Constituição’.
A fraternidade, portanto, passa a ser um elemento de concretude dos direitos humanos. Só existirão direitos humanos a partir dessa ideia de constitucionalismo fraternal, que supera o constitucionalismo liberal, que supera o constitucionalismo social, embora importantes dentro da história nos séculos XIX e XX, mas que no século XXI precisamos entender, por exemplo, que 280 mil pessoas no Brasil estão em situação de rua e que não haverá solução se não redefinirmos o conceito de constitucionalismo, de construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
A promoção da fraternidade pela dignidade da pessoa humana. Os direitos de fraternidade. Meio-ambiente ecologicamente equilibrado, consumidor sendo respeitado, igualdade para os vulneráveis, igualdade de gênero, combate ao racismo estrutural, tudo isso é resgate da fraternidade em uma sociedade da modernidade líquida e do cansaço. A fraternidade, portanto, passa a ser uma exigência da dogmática dos direitos fundamentais.
E para tanto, nada melhor do que irmos buscar um pensador tcheco-francês chamado Karel Vasak, que teve sua ideia trazida para o Brasil pelo grande e inexcedível professor Paulo Bonavides. Professor Paulo traz a Teoria Geracional dos Direitos Fundamentais, que cai no concurso para o qual vocês estão estudando, que não diz nada mais do que a reconstrução do princípio esquecido da fraternidade. Primeira, segunda e terceira gerações de direitos fundamentais do ser humano ou os direitos humanos fundamentais.
Nesse sentido, existem críticas a essa doutrina, porque alguns clássicos entendem que uma geração não supera a outra. Tudo bem. Tiremos o nome geração e coloquemos dimensão, Teoria Dimensional dos Direitos Fundamentais. Primeira geração atrelada aos direitos individuais, século XIX, uma influência da Escola Iluminista. A segunda geração com os direitos sociais, culturais e econômicos, decorrentes da primeira geração, em uma perspectiva de solidificação da igualdade. Mas e a terceira geração? São os direitos fundamentais direcionados ao destino da humanidade, relacionados a paz, ao meio-ambiente, a proteção e a conservação e ao direito econômico, com a defesa do consumidor. Aquilo que chamamos de direitos transindividuais, direitos difusos. Essa categoria que precisa, no século XIX, para cumprir as primeira e segunda categorias que não foram cumpridas nos séculos XIX e XX. É o elo de ligação.
É verdade, vocês poderão dizer, ‘mas os direitos fundamentais não acabaram por aí’. O mundo contemporâneo nos aponta a biotecnologia, a bioengenharia, ao filme ‘Mulheres Perfeitas’, com a Nicole Kidman, em que de repente uma sociedade verifica que todas as mulheres daquela comunidade se robotizaram. Eu não quero essa mulher perfeita. Sou casado há 37 anos e prefiro a minha, com defeitos e qualidades, mas humana.
Ao mesmo tempo vocês podem dizer, ‘mas o mundo contemporâneo também constrói o mundo virtual’. Alguns chegam a dizer que temos uma quarta e quinta gerações de direitos fundamentais. A quarta, os direitos relacionados a manipulação genética, que exige o resgate da ética. E a quinta geração a de vocês, da grande rede www, do direito virtual, que hoje aponta para a Inteligência Artificial e que nos redescobre um novo mundo. Essa novidade importou modificações nas relações sociais, a ponto de mudar o conceito de local e tempo do crime. Vejam as consequências de tudo isso.
Mas seja nas cinco gerações de direitos fundamentais ou em três gerações, temos a necessidade de resgatar a fraternidade. Poderão dizer ‘isso é uma utopia. Esse direito, o Poder Judiciário reconhece como tal?'. Basta clicar no site do STJ e do STF e pesquisar ‘sociedade fraterna’ ou ‘fraternidade’ e vejam quantas decisões temos colegiadas ou monocráticas. Só no STJ são mais de 500, porque não resolve problema de vulnerável que não tenha a construção ou uma solução pela perspectiva da solidariedade e da fraternidade. Assistência social, previdência social, políticas públicas, educação, habitação... nada disso se resolve sem esse componente. É o que podemos dizer, citando Ayres Britto novamente, ‘agora já podemos enfrentar o tema da progressiva formação do Estado fraternal, que veio para transcender o Estado social, mas sem o negar, tanto quanto o Estado social veio para superar o Estado liberal, mas também sem eliminar as respectivas conquistas, como é próprio de toda superação e transcendência’. Isso é um precedente do Supremo Tribunal Federal.
Isso não é uma novidade brasileira ou uma invenção de trazer isso para o Direito ou para a política. Vejam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, ela fala expressamente na fraternidade. A Constituição Portuguesa, que copiamos. Isso não é uma novidade nossa. É algo que vem do Direito Internacional e que aponta em várias Constituições no mundo. O artigo quinto da nossa Constituição, os direitos e as garantias fundamentais, que proclamam a promessa constitucional do constitucionalismo fraternal.
Vocês poderiam dizer ‘professor, desculpe, mas estamos vivendo um mundo em que a civil law, nosso modelo greco-romano, está sendo influenciada pelo modelo da common law, o modelo de precedentes e não acredito no que o senhor está dizendo, porque o Direito é o que os juízes dizem, o que chamamos de realismo jurídico, e, portanto, não reconheço essas suas palavras nos precedentes’. A isso digo, não faltam precedentes do STF aplicando a fraternidade em sua jurisprudência, portanto, esse realismo jurídico está presente.
A fraternidade, portanto, é capaz de dar fundamento a ideia de uma comunidade universal, de uma unidade de diferenças, na qual os povos vivam em paz entre si, sem o julgo de um tirano, mas no respeito das próprias identidades. Palavras de um filósofo italiano Antonio Maria Baggio, que nos aponta para esse caminho.
Vocês podem me perguntar ‘Como implementar isso na prática? O senhor continua na utopia’. Sim, eu continuo na utopia. Porque sou adepto do poeta uruguaio Eduardo Galeano, que diz que a utopia nada mais é do que a construção, o caminhar. Nesse sentido, existem formas de concretude da fraternidade. Uma delas é o acesso à justiça, como, por exemplo, a Justiça Multiportas. A Justiça Restaurativa.
Os princípios da fraternidade e da comunhão resgatam a ética, o Direito e a própria democracia, sugerindo um novo paradigma de Justiça, a que inclui, que pacifica e restaura as relações humanas. Isso é um elemento de concretude, de resgate dos direitos humanos no século XXI. Tenho certeza de que pelo menos um incômodo, a inquietude, eu deixei em vocês, de que isso é um princípio esquecido, é um princípio que precisa ser resgatado, mas que essa é uma categoria política, é um instrumento político de sociedade sim, que muda conceitos de sociedade, mas que também é uma categoria jurídica, porque tem um reconhecimento normativo enquanto tal e que pode, efetivamente, contribuir para a realização das três promessas brasileiras: democracia, república e federação.
Nesse sentido, trago a figura emblemático daquilo que a pesquisadora italiana Chiara Lubich chama de ‘amor ágape’, onde deve-se tratar os diferentes, com suas peculiaridades, na construção da unidade e que esse ‘amor ágape’ ou amor social é uma categoria política. Da mesma forma, não posso deixar de lembrar dois pensadores africanos que transformaram suas sociedades, um com um movimento político, que o arcebispo Desmond Tutu na África do Sul, e outro com o movimento da poesia que é o Mia Couto. Nesse sentido, o arcebispo Tutu diz que a justiça que esperamos é restauradora da dignidade das pessoas e o Mia Couto lembra que há coisas que fazem o homem, outras fazem o humano.
Eu espero ter trazido não uma novidade, mas uma inquietude. A inquietação nas mentes de cada um de vocês, que está estudando para ingressar no sistema de justiça, seja como magistrado, promotor, advogado, defensor, professor, servidor ou agente de política público, mas que pense que tudo que vocês estudam tem um motivo por trás, aquilo que a nossa Constituição Cidadã de Ulisses Guimarães anuncia como sociedade livre, justa e solidária e que nosso preâmbulo constitucional para a construção da sociedade fraterna, daí porque eu chamei essa palestra de constitucionalismo fraternal, com foco na proibição dos preconceitos.
Tenhamos em mente que a nossa perspectiva social, como ser humanos, é uma perspectiva modernidade sólida de Bauman e não da sociedade do cansaço ou da modernidade líquida. E uma pensadora paranaense, chamada Helena Kolody, dizia que a vida bloqueada instiga o teimoso viajante a abrir uma nova estrada.
Se vocês não reconhecem isso como um princípio esquecido, vislumbrem isso como a abertura de uma nova estrada.
Muito obrigado”.
Demais participantes
Também compuseram a mesa de honra da Aula Magna do segundo semestre de 2024: o desembargador Mauro Martins, diretor-geral do Centro de Pesquisas Judiciais da Associação dos Magistrados Brasileiros (CPJ/AMB); desembargador Carlos Santos de Oliveira, presidente do Fórum Permanente dos Juízos Cíveis e coordenador de Direito Civil da EMERJ; o vice-presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), desembargador federal Aluísio Gonçalves de Castro Mendes; a secretária-geral da EMERJ Gabriela da Silva Rafael Carneiro; e a diretora do Departamento de Ensino (DENSE) Bianca Oliveira de Farias.
Ministro Reynaldo Soares da Fonseca
Reynaldo Soares da Fonseca nasceu em São Luís do Maranhão no dia 28 de novembro de 1963. Se formou em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) em 1985. Cursou pós-graduação em Direito Constitucional também na UFMA, em convênio com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Direito Penal e Processual Penal na Universidade de Brasília (UnB). Além disso, é pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Instituto Ius Gentium, doutor em Direito Constitucional pela Faculdade Autônoma de São Paulo (FADISP) e mestre em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Iniciou na carreira jurídica como servidor do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão em 1982. Três anos depois passou a servir a Justiça Federal no Maranhão. Em 1986, se tornou Procurador do Estado do Maranhão. Ingressou na magistratura em 1992, assumindo o cargo de Juiz de Direito Substituto do
Distrito Federal e Territórios. No ano seguinte, assumiu como Juiz Federal Substituto na Seção Judiciária do Distrito Federal.
Foi promovido por merecimento em 1996 para o cargo de Juiz Federal da 1ª Vara da Seção Judiciária do Maranhão. Em 2009 foi novamente promovido por merecimento ao cargo de Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1).
Tomou posse como ministro do STJ em maio de 2015, assumindo a vaga do ministro aposentado Arnaldo Esteves Lima. Na Corte, é membro da Terceira Seção, da Quinta Turma, da Comissão de Regimento Interno e suplente do Conselho Deliberativo do Pró-Ser. Também é membro efetivo do Conselho da Justiça Federal (CJF).
Além disso, é professor da UFMA e autor de diversos livros, com especial destaque para suas publicações sobre Direito e Fraternidade.
“Criado pela Constituição Federal de 1988, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) é a corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil. É de sua responsabilidade a solução definitiva dos casos civis e criminais que não envolvam matéria constitucional nem a justiça especializada”.
Assista
Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=o-qw91WFUnM
Fotos: Maicon Souza
16 de agosto de 2024
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)