Nesta terça-feira (13), a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) sediou o Curso Nacional sobre os Enunciados de Equidade Racial, promovido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), a EMERJ e o Conselho da Justiça Federal (CJF).
O evento aconteceu presencialmente no Auditório Desembargador Nelson Ribeiro Alves. Houve transmissão via canal do STJ no YouTube, com tradução simultânea para a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
O curso conta com o apoio do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), do Centro de Estudos Judiciários (CEJ), da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).
Abertura
O presidente do STJ, ministro Herman Benjamin, pontuou: "Eu gostaria de realçar, se é que isso é necessário, mas evidentemente é, num país acostumado a discriminar e a afastar os outros, a relevância desses enunciados. Nós temos séculos de desigualdade racial e, muitas vezes, essa desigualdade é consolidada, afirmada e até reconhecida pelas mãos dos juízes. Hoje, precisamos que os juízes apliquem a Constituição e as leis garantindo igualdade material, e não apenas formal, a todos os brasileiros. Não é uma tarefa difícil; seria complexo se não contássemos com normas explícitas. Daí o apelo, como presidente do STJ e do Conselho da Justiça Federal, que faço às juízas e aos juízes brasileiros no sentido de que examinem — e até mais: estudem e, sobretudo, apliquem — esses enunciados, que são fruto de muito debate e de dezenas de pessoas de todo o país, cada uma delas com uma história, mas, ao mesmo tempo, com conhecimento profundo da temática jurídica, histórica, cultural e, o mais importante, da perspectiva ética dessa temática."
O diretor-geral da Enfam, ministro Benedito Gonçalves, salientou: "Hoje, dia 13 de maio, celebramos a abolição formal da escravidão no Brasil. Como juiz negro, não posso deixar de lembrar que a verdadeira abolição — aquela que se traduz em liberdade plena, igualdade real de oportunidades e na superação concreta do racismo estrutural — ainda está em permanente construção: uma construção árdua, diária e coletiva. Nesse contexto, o sistema de justiça não pode se contentar em apenas julgar. É preciso ir além da letra da lei; é preciso transformar, abrir portas, ampliar vozes e derrubar muros. Porque uma justiça que não se abre à diversidade e que não combate ativamente o racismo não é plenamente justiça. Por isso, é com grande honra que participo da abertura deste Curso Nacional sobre os Enunciados de Equidade Racial do Conselho da Justiça Federal, a quem quero saudar por essa iniciativa corajosa e necessária de colocar a questão racial no centro da agenda institucional, promovendo um espaço de formação, reflexão e compromisso com a equidade. O enfrentamento ao racismo estrutural e às desigualdades raciais já não pode ser postergado. O nosso Judiciário, como guardião da Constituição e dos Direitos Fundamentais, tem o dever ético e jurídico de atuar ativamente na construção de uma sociedade mais justa, igualitária e plural. Os Enunciados de Equidade Racial representam um marco importante nesse caminho, pois orientam a atuação judicial à luz de uma perspectiva antidiscriminatória, contribuindo para um Judiciário mais sensível, inclusivo e efetivo na promoção da igualdade racial."
O diretor-geral da EMERJ, desembargador Cláudio Luís Braga dell’Orto, destacou: "Este Curso Nacional sobre os Enunciados de Equidade Racial é um marco relevante, e a data de 13 de maio serve para revelar que, de áurea, essa lei não teve absolutamente nada. Até o nome, eu diria, é uma tentativa de naturalização de um fato histórico que a sociedade brasileira ainda não consegue compreender plenamente. Juridicamente, não temos ainda nenhum instrumento capaz de realmente realizar justiça nessa seara da submissão do povo negro à escravidão e da forma como as oligarquias brasileiras geriram esse fato ao longo da história do Brasil, desde as invasões portuguesas em 1500 até o domínio político das classes oligárquicas no país. O que tivemos foi uma tentativa — ou de naturalizar o fenômeno da escravidão, ou de aniquilar a memória dos povos originários. E não podemos esquecer que esta terra era habitada por povos que foram aniquilados. Houve diversas chacinas contra povos que já estavam aqui ou que foram trazidos compulsoriamente para o Brasil. Temos uma Lei Áurea que se resume a declarar — como se isso fosse possível — que está abolida a escravidão no Brasil, como se fosse possível fazê-lo por um simples ato de caneta áurea, que conferiria a alguém um poder quase divino de fazer cessar todas as aflições que recaíram sobre o povo negro. Uma escravidão que se perpetuou e se naturalizou no Brasil e que, de maneira antijurídica, culminou em uma lei que simplesmente lançou toda a população negra em uma pseudoliberdade, entregue à própria sorte, sem condições reais de disputar, em pé de igualdade com os demais, as condições mínimas de sobrevivência. Portanto, é extremamente importante quando temos a oportunidade de discutir os mecanismos jurídicos, porque estamos falando aqui de uma lei — uma lei simplória — que tentou, de forma ilusória, afirmar que é possível mudar uma realidade social apenas com um texto normativo, sem que esse texto ganhe vida concreta dentro da sociedade. Essa é uma das grandes discussões que temos no mundo do Direito."
E finalizou: "É preciso treinar as pessoas que vão operar o sistema de justiça, pois são elas que, de fato, darão vida àquele texto de lei. Porque, se não fizermos isso, vamos elaborar uma belíssima lei que não produzirá efeito na realidade e não levará as pessoas àquilo que se desejou enquanto legislador. Portanto, é fundamental que nós que atuamos no sistema de formação e aperfeiçoamento da magistratura — e, na semana passada, realizamos um encontro de Escolas de Governo, que, acredito, existem exatamente para isso — nos empenhemos em treinar os servidores públicos, de forma a oferecer à sociedade a efetiva operacionalização desses diplomas legais, que não podem ser meros enfeites em prateleiras. Eles devem ser revertidos em prol da população, para que possamos, de fato, concretizar essa função transcendental da lei. O racismo algorítmico é uma questão que está na ordem do dia. Quando desenvolvemos sistemas de inteligência artificial — e eu integro o Comitê Gestor de IA do Tribunal — estamos oferecendo aos juízes uma ferramenta chamada ASSIS, um assistente para formulação de decisões. Há uma preocupação, nos termos da Resolução nº 615 do CNJ, justamente em evitar vieses discriminatórios no treinamento dessas ferramentas de IA. Como essas são ferramentas informáticas que aprendem a partir do modo como são treinadas, se forem alimentadas com vieses discriminatórios, muitas vezes imperceptíveis até para nós mesmos, o sistema poderá reproduzi-los e potencializá-los. Por isso, é essencial promover uma reflexão constante e realizar revisões sistemáticas desses sistemas, para evitar que tais distorções sejam inseridas e amplificadas pela máquina. Essa é justamente a grande função dessas tecnologias: rapidez e capacidade de progressão no processamento de dados, mas isso não pode ocorrer à custa da justiça e da equidade."
Conferência de abertura
O desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior salientou: "Eu gostaria de destacar a importância de estarmos aqui hoje, nesta data, discutindo esse assunto. Atualmente, desempenho com muita honra as funções de presidente da Comissão de Heteroidentificação do TJSP, que, pelo seu gigantismo, tem recebido, nos últimos concursos, um número muito expressivo de pessoas autodeclaradas negras. Nos últimos dois anos, já participamos de quatro grandes certames, e eu inicio minha reflexão a partir dos resultados, porque eles nos trazem dados que merecem atenção e análise. Separei números que considero significativos. No Exame Nacional da Magistratura (Enam) de 2024, tivemos 736 pessoas autodeclaradas negras. Após as entrevistas e audiências presenciais, foram confirmadas as autodeclarações de 403 candidatas e candidatos. Isso representa 54,75% do total. Por outro lado, 303 inscrições não foram enquadradas. Esse número mostra que quase metade das inscrições recebidas no Estado de São Paulo foi rejeitada pela nossa comissão. Isso significa que garantimos que quase metade das vagas fosse destinada, de fato, à população que é o verdadeiro público-alvo das políticas afirmativas. Em um Estado como São Paulo, esse dado me parece bastante significativo."
A secretária-geral do CNJ e juíza do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF2), Adriana Alves dos Santos Cruz, relatou: "Nós partimos da premissa de que o racismo existe e precisa ser combatido, e a política de cotas é um meio efetivo para isso. Portanto, já podemos avançar para os desafios que ainda precisamos enfrentar. Acredito que um dos principais desafios é envolver os colegas brancos nessa discussão e, com a devida licença, vou me permitir fazer uma fala diretamente direcionada aos colegas da magistratura. Como destacou o desembargador Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior, a judicialização tem sido um problema e também uma estratégia de alguns grupos para deslegitimar a política de cotas. Por outro lado, esse também é um desafio inerente ao nosso sistema judicial, no qual o direito de petição é um direito constitucional — assim como a possibilidade de recurso e a ampla defesa são garantias legítimas. É importante, portanto, que não demonizemos a judicialização. Esse é um desafio que exige equilíbrio e discernimento."
O juiz do Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF6) Grigório Carlos dos Santos concluiu: "O Judiciário, guardião da legalidade, precisa reconhecer que sua composição ainda destoa da realidade brasileira. Mais de 55% da população é negra, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No entanto, menos de 15% da magistratura se autodeclara preta ou parda, conforme dados do CNJ. Nos tribunais, a presença negra é quase inexistente, e isso não é acaso: é herança de um processo histórico e excludente que começou com a abolição sem reparações e se perpetuou por meio de políticas que marginalizaram a população negra. Foram proibidos de ter acesso à terra e de frequentar a escola. Hoje, políticas como as cotas, aliadas à autodeclaração e ao procedimento de heteroidentificação, buscam corrigir essa distorção. Mas falar sobre isso ainda incomoda, porque desafia a estrutura de privilégios."
A juíza do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS) e juíza auxiliar da presidência do CNJ, Karen Luise, foi a responsável pela presidência da conferência.
Painel 1
O desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) Marco Aurélio Bezerra de Melo destacou: "Precisamos fiscalizar a aplicação dessa convenção, que integra os Direitos Fundamentais no país exatamente por ter sido aprovada por maioria qualificada nas casas legislativas e sancionada pelo Poder Executivo. Temos um Estatuto da Igualdade Racial. Poderia citar diversos documentos jurídicos, pois não nos faltam instrumentos legais para tratar da questão quilombola no Brasil. Hoje seria um dia para comemorar, no entanto, torna-se um dia de resistência e reflexão, pois há muito pouco a celebrar diante dos indicadores que temos. Se tivéssemos ouvido Joaquim Nabuco e Bezerra de Menezes, que defendiam a emancipação por meio da educação, talvez não estivéssemos diante de uma realidade tão dura. Ainda assim, este encontro, o trabalho do CNJ, do CJF, da Educafro e de tantas outras pessoas e entidades nos enche de esperança. Já passou da hora de construirmos novos dias e transformarmos a realidade do povo negro, que edificou esta nação."
A juíza do TJSP Hallana Duarte Miranda reforçou: "Os impactos das atividades poluidoras recaem com muito mais força sobre as populações negras, urbanas ou rurais. Ou seja, o descarte inadequado de resíduos, as moradias insalubres e quentes, a falta de acesso à proteção diante de desastres, como vimos nas enchentes no Rio Grande do Sul, são exemplos marcantes da crise climática que se avizinha e de seus impactos sobre essas comunidades. Outro viés do racismo ambiental é o fato de as pessoas negras não serem vistas como autoras e sujeitos da proteção ambiental. As comunidades quilombolas, grandes responsáveis pela preservação ambiental, muitas vezes são ignoradas nas políticas públicas, que são formuladas sem sua devida consulta. Quero destacar que, embora esses enunciados tenham sido cunhados no fim do ano passado, eles estão perfeitamente alinhados com a recente condenação imposta ao Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Alcântara. O Brasil foi condenado, em março deste ano, por violar a proteção territorial quilombola ao não consultar as comunidades afetadas e construir uma base aérea sobre seus territórios, impedindo o acesso à alimentação, aos direitos culturais e à própria sobrevivência do grupo. Essa condenação é vinculante, e entendo que os enunciados, ainda que anteriores a essa decisão, já estavam em plena consonância com a proteção dessas comunidades."
O diretor executivo do Educafro, Frei David Santos, concluiu: "Quero saudar a todas e todos que elaboraram, trabalharam e conceberam este evento. Nós nos debruçamos sobre os enunciados com muita atenção e com o firme propósito de ver a proteção dos direitos se concretizar. Para que essa proteção ocorra com mais eficiência, não faltam leis, o que falta é determinação. Entendemos que os enunciados são direcionados também aos juízes e juízas. Por isso, faço um apelo: por favor, leiam cada um dos enunciados e debatam entre si."
A membra do Conselho Consultivo da EMERJ, juíza Katia Cilene da Hora Bugarim, realizou a presidência do primeiro painel.
Painel 2
A juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT10) e juíza auxiliar do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Adriana Meireles Melonio ressaltou: "A base da nossa discussão reside no reconhecimento de que a persistente desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho configura uma grave violação de direitos humanos. As pessoas negras enfrentam dificuldades históricas de acesso a empregos protegidos, com as maiores taxas de desocupação, salários inferiores, maiores índices de informalidade e barreiras significativas para alcançar posições de liderança. Sob uma perspectiva antidiscriminatória, temos os Enunciados 23 a 31, que tratam das relações de trabalho. O Enunciado 23, especificamente, trata da desigualdade racial e de gênero no mercado de trabalho e da necessidade de uma atuação judicial antidiscriminatória."
A juíza do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) Mara Lina do Carmo pontuou: "O Enunciado 34 trata da garantia de diversidade entre os jurados. Mas por que esse enunciado é importante? Porque o júri é uma instituição voltada à realização de julgamentos pelos pares. E, ao nos perguntarmos, 'será que a composição desse júri realmente reflete a composição da sociedade do local onde o julgamento ocorre?', chegamos à preocupação central do enunciado. Ele faz referência aos dados do IBGE justamente para garantir uma proporção adequada de pessoas negras e de mulheres, proporcionando julgamentos realizados por pessoas com olhares diversos. Isso é fundamental, pois, se o Conselho de Sentença for composto exclusivamente por homens brancos, o risco de um viés racista e machista é muito elevado."
O juiz do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e secretário-geral do CJF, Erivaldo Ribeiro dos Santos, salientou: "Tivemos grande dificuldade na aprovação do Enunciado 33, pois pareceu uma novidade tratar dessa temática. Por isso, foi necessária uma discussão calorosa sobre o conteúdo, especialmente quanto à redação, para evitar interpretações equivocadas. O Enunciado 33 estabelece que, nos casos de discriminação racial indireta, a responsabilidade civil de pessoas jurídicas de direito público ou privado por ato discriminatório independe da demonstração de dolo ou culpa. Esse enunciado dialoga com outros, especialmente os que tratam do racismo algorítmico e do descuido, proposital ou não, de plataformas digitais ao disponibilizarem seus produtos, o que frequentemente resulta em discriminação racial indireta. Há pesquisadores negros que se dedicam ao estudo dessas questões. Assim, o Enunciado 33 se relaciona diretamente com a responsabilidade das plataformas digitais, bem como com o uso indevido do reconhecimento facial, cujos erros afetam desproporcionalmente pessoas negras. Há algo errado na modelagem desses sistemas, e não podemos aceitar isso. Já o Enunciado 32 dispõe que abordagens policiais baseadas em filtragem ou perfilamento racial, praticadas em detrimento de indivíduos ou comunidades negras, configuram racismo institucional, ensejando responsabilização estatal por danos materiais, morais, econômicos e psicológicos, tanto individuais quanto coletivos."
A presidência do segundo painel ficou a cargo da desembargadora do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) Daldice Santana.
Assista
Para assistir na íntegra, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=Eqna6aTsUHM
Fotos: Maicon Souza
13 de maio de 2025
Departamento de Comunicação Institucional (DECOM)